49° Fenata encerra com adaptação de “O beijo no asfalto” de Nelson Rodrigues

O último dia de mostra presencial da 49ª edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata) trouxe para o palco do Cine Teatro Ópera a peça “O beijo no asfalto”, adaptação da história criada pelo escritor e teatrólogo brasileiro Nelson Rodrigues. A obra, publicada em 1960, foi apresentada para o público ponta-grossense pela Companhia Teatral Independente (CTI), do Rio de Janeiro.

A história inicia em uma delegacia, na qual o jornalista Amado Ribeiro relata ao delegado Cunha ter presenciado dois homens se beijando na rua após um deles ser atropelado. Enquanto isso, Aprígio chega na casa de sua filha Selminha onde também está Dália, sua filha mais nova, para informá-las que o marido da mais velha, Arandir, está a caminho da delegacia para ser testemunha do atropelamento. O pai então insinua para a filha que o marido possa ser homossexual, uma vez que foi Arandir quem beijou o homem atropelado. A partir de então, a peça mostra as repercussões do ato de Arandir na sociedade e a forma como os demais personagens reagem à situação.

A obra gira em torno dos pontos de vistas diferentes sobre uma singela forma de afeto: o beijo entre Arandir e o morto. Para o jornalista Amado Ribeiro, o ato de Arandir é digno de capa de jornal, e em busca de um furo ele convence o delegado Cunha do potencial da história tanto para a polícia como para a imprensa. Já Selminha custa a acreditar que seu marido tenha beijado outro homem e busca alegar das mais diversas formas para o jornalista e delegado o quão “homem” Arandir é. Dália, por outro lado, tenta conquistar o amor de Arandir, e para isso aceita o feito do cunhado em busca de tê-lo apenas para si.

O jornalista Amado Ribeiro convence o delegado Cunha do potencial de contar a história do ‘Beijo no asfalto’. Foto: Manuela Roque.

Com um enredo simples e de fácil entendimento, a obra de Nelson Rodrigues pode ser considerada uma tragédia contemporânea surpreendente. Para quem não conhece a história, a reviravolta final, na qual se descobre que Aprígio, pai de Selminha, era na verdade apaixonado por Arandir, e por isso nunca se deu bem com o genro, choca qualquer espectador. Ao final da peça, Aprígio mata Arandir após declarar para ele seu amor não correspondido.

O texto, mesmo escrito há mais de cinquenta anos, não poderia ser mais atual. Ao discutir temas como preconceito, homofobia, relações familiares conturbadas, corrupção, sensacionalismo midiático, machismo, objetificação da mulher, abuso sexual e violência, “O beijo no asfalto” atravessa gerações e conversa com dilemas e questões que ainda se perpetuam e que, em muitos casos, também podem ocorrer na vida real. Além de todo um arco narrativo pautado pelo preconceito contra homossexuais, um dos momentos mais fortes da peça ocorre quando o jornalista Amado Ribeiro e o delegado Cunha invadem a casa de Selminha para realizar um interrogatório a respeito do desaparecimento de Arandir, e quando ela alega não saber onde o marido está, os personagens se aproveitam de seu momento de vulnerabilidade e a estupram.

De acordo com o diretor da peça, Ribamar Ribeiro, o grupo encena o texto de Nelson Rodrigues há mais de oito anos. “Em 2013 a CTI ganhou um edital em que podíamos escolher uma peça do Nelson Rodrigues para encenar e escolhemos ‘O beijo no asfalto’ por ser uma peça atemporal, e estamos até hoje fazendo essa montagem contemporânea, com velocidade, com pulsação e que conversa com esse imediatismo da geração atual”. Ribamar ainda destaca que um dos principais desafios foi fazer em pouco tempo a remontagem da peça: o grupo teve seis ensaios ao longo de um mês para recriar com um novo elenco a montagem para o Fenata.

Companhia Teatral Independente (CTI) encena a morte de Arandir em ‘O beijo no asfalto’. Foto: Manuela Roque.

Em atividade desde 2003, a Companhia Teatral Independente atua no bairro do Irajá, periferia do Rio de Janeiro com um dos menos índices de desenvolvimento humano do Brasil. O projeto, que tem o intuito de aproximar a cultura do teatro da comunidade, iniciou produzindo cenários e equipamentos de apoio com materiais recicláveis e apresentando as peças clássicas de Shakespeare e de Nelson Rodrigues. Até o momento, a CTI já proporcionou a experiência de atuação e construção teatral para mais de 300 jovens do Rio de Janeiro, e vêm lançando artistas em todas as esferas da cultura.

Para o diretor, o processo de se reinventar como artista e como ser humano durante a pandemia o fez valorizar ainda mais a cultura e a arte em sua vida. “A pandemia foi muito pesada para nós artistas, a primeira coisa que ela fez foi nos afastar do nosso público. Nós artistas cuidamos da alma das pessoas, então precisamos desse contato, desse olho no olho, e às vezes com as câmeras que foi a limitação que tivemos não conseguimos alcançar essas pessoas”, diz.

Ribamar finaliza afirmando que subir ao palco do Fenata foi essencial para o grupo se reconectar com o público e avalia o festival como uma casa em que a CTI sempre se sente bem-vinda a retornar. “Percebo que as pessoas estão ávidas por voltar a se encontrar, e pressinto que isso será uma revolução artística para todos, em que pessoas vão querer viver coisas que nunca viveram antes, e nós artistas vamos entender cada vez mais o quanto esse contato é importante”.

Ainda na quinta-feira (11), o festival exibiu na mostra paralela, transmitida de forma online, a peça “Arara, Gralha e Pinhão”, do Grupo Flogisto. A apresentação retratou a vida na natureza de aves típicas brasileiras quando são surpreendidas por um caçador que vende animais através da biopirataria. Juntas, as aves lhe dão uma lição sobre ganância do ser humano e a importância de preservar o ecossistema do país. Já na sexta-feira, o Fenata teve seu encerramento oficial com a transmissão da peça “Lune”, do coletivo ponta-grossense Cacareco.

Premiação

Foto Premiação Fenata. Crédito: Divulgação/ UEPG.

Na noite de sábado (13), o festival realizou a premiação de Júri Popular, com troféus para as peças vencedoras da Mostra Principal e Mostra Paralela. Neste ano, o público pôde acompanhar todas as apresentações da Mostra Principal tanto presencialmente como online, com transmissões no dia seguinte da encenação da peça. Já a Mostra Paralela foi exibida apenas pela internet.

Por meio de um questionário liberado ao final de cada peça nas redes sociais da UEPG, o festival totalizou 1277 votos para escolher os dois vencedores. O resultado foi calculado a partir da média aritmética das notas de cada espetáculo. Os vencedores das duas categorias do 49ª Fenata foram:

Mostra Paralela – “Lune”, Coletivo Cacareco de Ponta Grossa;

Mostra Principal – “A Borboleta da Colina” – Grupo Diphuso de Ponta Grossa;

Em sua fala final, a diretora de Assuntos Culturais da UEPG e organizadora do Fenata, professora Sandra Borsoi, destacou a importância da presença de artistas de todo o Brasil no festival, bem como a representatividade de grupos teatrais da cidade. “Essa presença nos alegra muito e fortalece o Fenata, então nosso muito obrigada a você que participou e acreditou que estar aqui é um momento de fruição da cultura de Ponta Grossa”.

Nenhum comentário

Adicione seu comentário

Skip to content