O dia em que Ponta Grossa parou

No dia 14 de maio de 1989, Raul Seixas visitava Ponta Grossa pela primeira vez. O show que encheu quadra e arquibancadas do Ginásio de Esportes Oscar Pereira fazia parte da turnê “Panela do Diabo”, que também batizou o derradeiro disco feito em parceria com o conterrâneo Marcelo Nova e que seria lançado no mercado dois dias antes da morte do roqueiro baiano, no dia 21 de agosto do mesmo ano.

Algumas lendas, ou histórias sem comprovação, dão conta da passagem de Raul por Ponta Grossa. Algo comum em se tratando de uma figura tão mística quanto alcoolizada. A falta de registros por parte do público, foto ou ingresso, é compensada pela memória de quem esteve presente. Gian Hey tinha 13 anos em 1989 e não teve problemas em convencer a família a deixá-lo ver de perto, e pela única vez, o seu ídolo na música. “O show foi curto, Raul estava visivelmente bêbado, eu fiquei muito feliz, espremido pelo público, mas emocionado”.

A presença de Raul no palco não ultrapassou os 25 minutos, tempo suficiente para apenas cinco músicas, fingindo tocar guitarra e escudado por uma banda de mais quatro competentes músicos paulistanos. O restante do show foi conduzido por Marcelo Nova, entre músicas de sua carreira solo e do repertório que daria no disco “A panela do diabo”. “Raul chegou a cair no palco e depois disso o Marcelo Nova levou a apresentação até o fim, mas o público não vaiou”, conclui o fã.

Outro fã presente ao show, Michel de Carvalho, guarda outra memória. “Raul ficava pendurado nos ombros dos caras da banda, estava cambaleando e caiu, recebeu uma vaia e saiu do palco”, difere o fã que se encontrava no mesmo bar em que ocorreu uma parte da estadia de Raul na cidade.

Doses e garrafas

O proprietário do Bar Martins, Paulo Martins, não foi ao show, mas já presenciou histórias sobre a passagem do maluco beleza pelo bar, que no final da década de 80 tinha outro proprietário e levava o nome de Bar do Baiano. “O que contam é que ele veio aqui e tomou uma dose de uísque naquele canto”, afirma, desviando o olhar para uma parte do bar ao lado da parede do banheiro. As mesas de fórmica vermelha que pertenciam ao Bar do Baiano e que receberam Raul naquela tarde ainda duraram mais alguns anos até darem espaço para as mesas de plástico encontradas hoje no Bar Martins, propriedade de Paulo desde 1993.

Sobre a bebida consumida não cabe muitos questionamentos, apesar de o fotógrafo Rui Mendes afirmar que esta não era a bebida usual do Raul Seixas, mais adepto a duas cervejas no café da manhã, seguida por doses de vodca com suco de laranja, composição esta que levava pouco suco e muito do destilado. “Visitei Raul Seixas em 1987 e fizemos um ensaio fotográfico que durou horas. Raul nem sequer tirou o  pijama”, diz o fotógrafo.

O fato é que Raul sempre esteve cercado de lendas. Algumas verdadeiras, como a vez em que foi expulso do palco pelo próprio público em um show no Guarujá, litoral de São Paulo. O estado etílico do roqueiro baiano causou dúvida na plateia que acreditava estar diante de um impostor. O caso foi resolvido na delegacia e só teve fim após os documentos de Raul Seixas serem trazidos de São Paulo para a comprovação de identidade ao delegado de plantão. As lendas se perpetuaram e couberam bem à fama de doidão que pregava ideias alternativas.

Ainda sobre o show de Ponta Grossa, outro dado não confirmado diz sobre a tentativa de um jornalista local tentar uma entrevista com a ilustre visita daquele dia. A entrevista não aconteceu, pois Raul já se encontrava abraçado à garrafa no saguão do hotel onde se hospedou. Os dois jornais locais em circulação naquele ano não deram um palavra sobre a vinda do Raul Seixas, nem sobre o show, muito menos sobre sua morte.

Contudo, a falta de comprovação não exclui a lenda, que também dá conta de uma caminhada de Raul sozinho do Hotel Vila Velha até o ginásio Oscar Pereira. Entretanto, Alceu Bortolanza não acredita nestas histórias. “Raul não estava na sua melhor fase, mas era um cara reconhecido, ele não caminharia tranquilamente pelas ruas, até porque ele estava bastante debilitado naqueles dias”.

Alceu planejou presenciar um de seus artistas preferidos, mas desistiu ao ver a fila que dobrava esquina da rua Balduíno Taques. “Estava cansado e fui para casa. Liguei o rádio e sintonizei na Central, a transmissão do show foi uma surpresa. Peguei uma fita cassete e gravei tudo”, afirma o dono da loja de discos Arco da Velha. A gravação, que é a prova definitiva, está disponível no Youtube.

O último disco

O disco que surgiu após os 50 shows de 1989 com a dupla Raul Seixas e Marcelo Nova se tornou o último registro de Raul em estúdio. Outros lançamentos póstumos se seguiram, assim como reedições dos discos que atualizaram grande parte da discografia do maluco beleza.

Em “A panela do diabo”, a voz de Raul não passa de um fiapo, o que gerou opiniões controversas dos fãs sobre um possível aproveitamento do parceiro Marcelo Nova. Conhecedor da discografia de Raul, Alceu Bortolanza divide desta controvérsia. “O Marcelo Nova tem um papel importante por dar apoio financeiro e artístico, mas ele também se aproveitou desta situação. Na verdade, eu fiquei com dó do Raul”, diz.

Depois do show em Ponta Grossa, a turnê seguiu por Curitiba e Londrina. O último show aconteceu em Brasília, poucos dias antes de sua morte. Na manhã de 21 de agosto uma pancreatite aguda causada pelo alcoolismo e uma diabete descuidada levou Raul ao encontro de seus ídolos Elvis e John Lennon. Com este último, Raul chegou a travar contato e até mesmo tentou com o ex-Beatle a chance de ter alguma avaliação do seu trabalho, quem sabe a possibilidade de ter uma de suas letras na voz de um de seus mestres. É o que diz mais uma das lendas em torno do Raul.

As lendas sobre Raul não cessaram nos anos seguintes. Clones e covers se espalham pelo Brasil, seus discos seguem em catálogo e até mesmo a aura mística que o próprio Raul havia abdicado nos anos 80 segue atualizada em meio a um ideário hippie renascido e localizado.

Seu nome é lembrado toda vez que uma banda brasileira sobe em um palco. Até mesmo o roqueiro norte-americano Bruce Springsteen reverenciou o baiano. Em sua última passagem no Brasil, Bruce abriu seus shows com uma versão fiel de “Sociedade alternativa”, para a surpresa de muitos.

Reportagem de Marcelo Mara

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