Uma cultura de tudo, para todos

Músicos, atletas, dançarinas, atrizes e atores… Todos deficientes visuais. São artistas que estão cada vez mais presentes na sociedade. Eles comprovam que a arte, além de uma terapia, é ferramenta para a inclusão social, melhora a autoestima e, consequentemente, o quadro clínico de quem tem uma deficiência.

Odete Alves Scheifer conhece bem essa realidade. Deficiente visual devido a sequelas de diabetes, ela integra a equipe de alunos da Associação de Pais e Amigos do Deficiente Visual (APADEVI), em Ponta Grossa. “Uma das muitas atividades que faço na APADEVI é o coral. Além das melhorias para nós mesmos, como autoestima e prova de que somos capazes, atividades assim vêm para romper barreiras de preconceitos, muitas vezes presentes devido à deficiência visual”, conta Odete, que se sente feliz com suas apresentações de coral e confecções artesanais.

Diante de limitações físicas, sensoriais ou psicológicas, o medo, insegurança e vergonha são comuns. E é nesse momento que a arte pode agir na vida da pessoa e mostrar outra realidade, menos dura, em um mundo mais colorido. “A arte promove a representação de sentimentos, sensibilidade e criatividade de cada um. Este processo pode ser valioso para a pessoa, que se sentindo capaz de criar algo, acredita em si mesma, vivendo melhor e mais feliz”, conta a assistente social da APADEVI, Regina Pedrozo.

O acesso à cultura para deficientes visuais em Ponta Grossa é um tanto precário. No começo de 2014, estudantes cegos e com baixa visão foram impedidos de frequentar as aulas no Conservatório Maestro Paulino devido à falta de professores capacitados para este atendimento. Estudar piano sempre foi o sonho de Rose Amaral, ex-aluna da APADEVI. Há dois anos, quando ainda não morava na cidade, ela ganhou uma bolsa em uma instituição e passou a estudar o instrumento. Por conta de uma mudança de última hora de trabalho da filha, precisou mudar-se para Ponta Grossa.

Quando chegou à cidade, orientaram que ela procurasse a instituição de ensino Conservatório Maestro Paulino, existente há mais de 40 anos e financiada, sobretudo, com dinheiro público. Esperava com a procura encontrar um local que fornecesse boa formação musical de modo gratuito, ou mesmo, com valores mais acessíveis. Mas seus planos, assim como os de, no mínimo, outros cinco alunos da APADEVI que têm interesse em receber formação em algum instrumento, não deram certo. “Eles falaram que não podia fazer as aulas porque não possuíam professores capacitados para nos ensinar”, diz Rose.

A diretora da APADEVI, Cilmara Buss, aponta que as aulas de música que a entidade oferece são muito básicas. “O que estes alunos buscam é uma formação e isso a gente não consegue dar, pois só uma instituição de música pode certificar, eu imagino”. O contato com a música, dentro da instituição, vem através do coral e das aulas de musicalização.

Para o diretor do conservatório, Jairo Ferreira, a solução que se pode ter no momento – já que os instrutores do Maestro Paulino não sabem ainda guiar musicalmente cegos e pessoas com baixa visão – é formar professores da APADEVI para então repassar esse conteúdo aos alunos. “Quem sabe eles consigam desenvolver alguma técnica, por já desenvolverem este trabalho, que nós ainda não dominamos”, diz Ferreira.

“Apesar das dificuldades, contudo, é espantoso como uma instituição pública ainda não tenha se adequado à acessibilidade”, finaliza Cilmara.

Mães ativas, cultura dissipada

O artesanato é algo bem presente nas diversas manifestações culturais da APADEVI. Quando levavam seus filhos para a aula, a sala de espera na recepção da instituição ficava repleta de mães. Sentadas na frente de uma televisão, elas ficavam conversando, esperando o tempo passar, assistindo TV, dormindo. Aquilo causou um incômodo na assistente social Regina Pedrozo. “O tempo ocioso precisava ser transformado em resultados de grandes criatividades”, relembra.

Pensando nisso, ela idealizou o Clube de Mães da APADEVI. Ainda sem nome, o grupo se reúne de segunda a quarta, durante a tarde. Guirlandas, bonecos de material reciclável, carrinhos, bonecas de pano… Todo material possível é aproveitado para ser transformado em produtos.

Mãe da pequena Vitória, de 9 anos, Marcia Reju é uma das mães do grupo. Segundo ela, mais do que uma aceitação da comunidade para a produção do Clube de Mães, é de extrema importância que as pessoas da própria instituição se envolvam. “Não são todos que gostam de mexer com artesanato, com trabalhos manuais. Mas no nosso grupo, temos muitas pessoas que estão envolvidas e estão buscando uma utilidade boa, que venha somente a somar no trabalho da APADEVI”, afirma Marcia.

 Um novo olhar sob as artes cênicas

Envolvimento, integração e superação de dificuldades. O Grupo Teatral UNIDEV (União dos Deficientes Visuais) atua no cenário cultural ponta-grossense buscando transmitir os mais variados valores para o público. A iniciativa partiu de pessoas da Associação Unidev em 2007.

Heloísa Pereira, atual diretora voluntária do grupo teatral, afirma que os primeiros ensaios começaram no box do Mercadão Municipal. “Em 2009 dei continuidade aos ensaios nas manhãs de quarta-feira na antiga sede da Unidev”, conta. O teatro com pessoas cegas e com baixa visão utiliza os sentidos para a elaboração do mundo e do universo do personagem, na memorização dos textos, nas relações interpessoais, bem como na locomoção e orientação no espaço cênico.

O Grupo Teatral UNIDEV tem como missão conscientizar o maior número de pessoas através de apresentações em escolas, entidades civis e religiosas, em festivais, como também levar arte às pessoas que não têm acesso ao teatro convencional. Para atingir esse objetivo, optou-se pela simplificação de cenário. Em todos os espetáculos há uma preocupação em passar uma mensagem de respeito e inclusão.

A participação no grupo auxiliou na superação de dificuldades para os deficientes visuais. Para o ator Marcos Germano, a integração no teatro aguçou seus outros sentidos. “Não enxergo, mas posso sentir de várias formas a reação da plateia”, conta. Além da superação corporal, a timidez é algo que vem sendo superado.

E o acesso à cultura para os deficientes visuais em PG?

Em um mundo em que tudo é construído e planejado para quem possui todos os cinco sentidos em perfeito estado, é ‘comum’ que o diferente seja ignorado, esquecido ou nem sequer cogitado. Imagine poder só ouvir um filme… Assim como outras formas de entretenimento, como programas de televisão, espetáculos de dança e peças de teatro, o cinema é construído para quem vê. O silêncio entre as personagens, a transição de uma cena a outra e até a trilha sonora subindo gradativamente para criar tensão não funcionam sem estarem associados à imagem. Essa barreira manteve – e ainda mantém – muitos deficientes visuais longe do consumo de produtos culturais.

Segundo o coordenador de Comunicação da Fundação Municipal de Cultura, Eduardo Godoy, a Fundação ainda não oferece de forma satisfatória a questão da acessibilidade para pessoas com deficiência visual, porém estão caminhando para mudar este quadro. “Na Biblioteca Pública, por exemplo, o acesso já é facilitado, com indicações em braile nos corrimões, elevador e entrada sem desnível. Além disso, o acervo conta com audiolivros, livros com textura e livros com opções sonoras”, afirma.

Há dificuldades também em direcionar eventos específicos para o público com deficiência visual. “Para deficientes físicos e auditivos, a Fundação de Cultura conseguiu levar atividades do Festival Nacional de Contadores de Histórias este ano e pretende ampliar as ações”, afirma Godoy.

Para o professor de coral da APADEVI, Renato Costa, não deve haver distinção de público: “acredito sim que deva haver oferta de arte para quem goste da arte, seja cego, surdo, branco ou negro. Quem gosta a encontra, ou acaba por fazer parte daquela que lhe agrada”.

Na medida do possível, busca-se apoiar qualquer grupo que procure a Fundação. Há uma avaliação da relevância, abrangência, capacidade técnica e seriedade do grupo. O apoio é feito através da disponibilidade de transporte, alimentação, recursos técnicos, hospedagem e cessão de espaços, mas tudo dependendo das possibilidades da Fundação de Cultura. “Não temos uma linha de apoio específica para um nicho da população, como os deficientes visuais, mas buscamos atender a todos, sem distinção”, finaliza Godoy.

Reportagem de  Larissa Rosa

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