Hercília Rolim era a rainha da noite de Ponta Grossa no começo da segunda metade do século XX. Ao seu comando respondiam meia dúzia de mulheres que frequentemente eram substituídas por outras mais jovens ou experientes. Todas estas acompanhantes constam no livro de registros de prostitutas da I Vara Criminal da Comarca de Ponta Grossa. O documento reúne quase 2 mil fotos 3×4 com nomes e datas de registros, algumas com RG, outras com dados de origem e local de trabalho, recolhidos pela Delegacia entre os anos de 1950 e 1960.
O documento foi construído com o objetivo de controlar a profissão que tanto incomodava a sociedade pontagrossense na época. Pode-se medir a insatisfação das famílias se considerarmos a quantidade de reclamações publicadas pelo jornal Diário dos Campos na coluna “Do que o povo reclama”. Era comum em todos os meses aparecer pelo menos uma citação de desconforto com a presença de mulheres em bordéis, casas de tolerância, ruas, hotéis e pensões que permitiam o uso de quartos para a troca de sexo por dinheiro. Parte do trabalho de pesquisa sobre a frequência do tema prostituição nos jornais está presente na monografia de Gisele Gaspar, do curso de História, “Sociabilidade e conflitos: o cotidiano da Boate Chuva de Ouro”, de 2008.
O preconceito sofrido pelas prostitutas, relatados nas páginas dos jornais e nos olhares raivosos de donas de casa não sofreu tanta diferença se comparado aos dias de hoje. Os discursos sanitaristas se mantêm em torno da transmissão de toda sorte de doenças, não apenas as sexualmente transmissíveis. A polícia vê a profissão associada à criminalidade e ao tráfico de drogas e busca isolar a atividade para locais e horários restritos.
Defensores da família como instituição moralizadora condenam a liberdade e o comércio do próprio corpo, mas não admitem que a função social da prostituição também envolve o controle da moral familiar, afinal, para cada virgindade feminina mantida, muita prostituta sofreu preconceito. Para cada iniciação sexual masculina, uma meretriz encontrou uma forma de sobrevivência. “Senhoras de família tapavam os olhos dos filhos para estes não perceberem “aquelas mulheres” com gosto para o álcool e o tabaco. Desde o início do século XX as páginas dos jornais relatavam constantes reclamações da sociedade com relação às prostitutas”, conclui a professora de História Gisele Gaspar.
Mais cabaré, mais polícia
Na década de 1940 Ponta Grossa tinha 50 mil habitantes e vivia um aumento significativo nas práticas de prostituição. Estima-se que havia uma prostituta para cada 25 habitantes. Com isso, aumentou a ação rigorosa da polícia, como a obrigatoriedade de registro na Delegacia, o que comprovava o controle do crescimento da atividade, e o porte da carteira do serviço de higiene policial, retirada junto ao Gabinete de Identificação, que garantia o controle sanitário. O professor do curso de História Edson Armando Silva mantém uma pesquisa sobre a sociabilidade pontagrossense da época. “A estimativa é alta, por mais que não se pode comprovar em números absolutos, mas representa a ebulição da cidade, prostituição também é progresso. O que também explica a concentração de casas de meretrício nas ruas próximas à Estação Ferroviária. Diversão para viajantes e ferroviários em noites de folga”, afirma o historiador.
Enquanto aumentava o número bordéis e de pontos de prostituição espalhados pelo centro, principalmente nas ruas Engenheiro Schamber, Theodoro Rosas, Fernandes Pinheiro, Tenente Hinon Silva e Rua do Rosário, a polícia tentava fechar prostíbulos ou transferir a atividade para regiões mais distantes, como o bairro Nova Rússia. A punição às prostitutas era mantê-las distante dos olhos da sociedade patriarcal, mas não tão distante que não pudessem ser vigiadas pela própria polícia.
Espaços de resistência
Na década de 50 os prostíbulos se concentravam nas imediações da Estação Ferroviária, mas ainda hoje podemos encontrar na localidade bares nos quais a cerveja custa R$ 15 e que oferecem os mesmos serviços. Hotéis da rua Tenente Hinon Silva ainda alugam quartos para programas combinados nas proximidades, muitos resistem ao tempo e são remanescentes da época em que a cidade parecia ter um meretrício intenso.
Claudia, cujo nome real foi preservado, trabalha há mais de 30 anos nos bares ao redor da antiga Estação. Arisca com a reportagem, Claudia não quis informar idade nem o local onde finaliza os encontros combinados no Bar Original, que por coincidência se faz vizinho de uma delegacia recém-desativada. “Já trabalhei nestes bares, já tive um bar aqui perto. Teve um tempo bom, lá no começo era bom, as pessoas respeitavam. Agora só tem movimento à noite, e quando tem”, diz receosa em frente ao bar. Há poucos metros dali, no Hotel Santa Cruz, uma senhora informa que o estabelecimento não oferece pernoite e que os quartos simples são alugados por períodos. “O Hotel já foi um hotel de verdade, esse prédio tem mais de 100 anos, hoje raramente entra alguém sozinho, não tem pouso. Exceto para as mulheres que trabalham na rua e que moram aqui”, afirma a recepcionista que preferiu não se identificar. Uma olhada atenta pelo corredor mostra uma tarde sem movimento no Hotel, as portas dos quartos permanecem abertas e uma mulher pendurando roupas no varal esticado no final do corredor.
Nos prédios de dois andares da rua Engenheiro Schamber os bordéis se confundiam com casas de show e a sociabilidade masculina envolvia os serviços de mulheres selecionadas. No número 56, a Boate Chuva de Ouro, propriedade de Hercília Rolim, se notabilizou por oferecer bebidas finas e mulheres exclusivas da casa, monólogos teatrais com Aracy Balabanian, Dercy Gonçalves e atrações musicais, como Virgínia Lane e o grupo Recuerdos de Ypacaraí, completavam as atrações frequentemente oferecidas.
O livro com os registros de 10 anos de prostituição em Ponta Grossa faz parte do Acervo do Poder Judiciário e se encontra sob a tutela do Departamento de História (DEHIS) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). O DEHIS também mantém processos-crime da época, em alguns há histórias de crimes contra prostitutas, geralmente apoiados na desmoralização da atividade e no consumo de álcool como justificativa para atos machistas e violentos.
Processos-crime da época relatam machismo e violência contra prostitutas
Noite de 11 de março de 1938. Na boate de Hercília Rolim dois homens se encontraram simultaneamente para arrematar o amor passageiro de Castorina. Esta acompanhava Raul Cribari quando adentrou à casa um conhecido cliente. A paisana o Delegado do munícipio de Reserva, Tenente Dias, se dirigiu à meretriz da mesa de Raul e disse: ” – Você não pode se sentar com este sujeito, pois está comprometida comigo”.
Diante da recusa de Castorina em trocar de parceiro, Dias foi mais incisivo em separá-la. Agarrou-a pelo braço e atravessou o salão em direção a um dos quartos da Boate. Com dificuldade Castorina se desvencilhou dos braços do Tenente e armada de uma estatueta tentou acertar o mesmo, agora protegido por seu escudeiro, Alator de Oliveira. A estatueta rasgou o paletó de Alator e Raul foi ao encontro de Castorina para libertá-la da fúria de Dias. Quem apaziguou os ânimos foi a arma de Alator, apontada para Raul e Castorina que abraçados se renderam à possibilidade de serem alvejados.
Raul se retirou casa e chamou a polícia que logo entrou em ação. Dias e Alator permaneceram na Boate quando chegaram os policiais, os dois amigos se encontravam ainda mais embriagados do que quando o conflito se originou. A presença da polícia não intimidou o Tenente que conhecia e cumprimentava os companheiros de profissão. Castorina, atendendo às ordens de Hercília, não fez companhia para mais ninguém naquela noite.
Quando a noite agonizou frente aos primeiros raios do clarão da aurora, um cambaleante Tenente Dias procurava sua prostituta preferida pelos quartos escuros que abrigavam os objetos de prazer da noite anterior. Castorina acordou sufocada sob as bofetadas do Tenente, este de maneira ágil despiu as vestimentas de Castorina e abriu-lhe as pernas com o intento de ter sexo à força. A mocinha quis gritar, mas não conseguiu, no mesmo quarto outras prostitutas assistiam impassíveis a cena, sabiam que o Tenente não era flor que se cheirasse e preferiram se retirar rapidamente. O Tenente não queria penetrá-la como tradicionalmente Castorina negociava seu corpo, o delegado pressionava contra seu ânus, numa prática sexual que Castorina tentava se safar.
Quem impediu o estupro foi a dona da casa, Hercília Rolim, que aos gritos separou o casal e expulsou o Tenente. Castorina tinha o corpo coberto de marcas roxas e avermelhadas das mãos de Dias. A polícia novamente foi acionada, agora para resolver outro conflito, no mesmo local em que há poucas horas se retirara.
Os relatos de Castorina foram em vão, e o Tenente sequer respondeu pela ocorrência do qual fora o causador. Hercília não se surpreendeu, ela sabia que o Tenente tinha o hábito descer o braço em qualquer mulher que ousasse lhe trair. (texto adaptado de parte do processo 11 de março de 1938. Boate Chuva de Ouro. Delito: Violência sexual e lesões corporais. Artigos 303 e 266).
Reportagem de Marcelo Mara
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