Três horas e trinta dias

Era quase mensal. Assoviava no portão ou batia palmas, como se não fosse íntimo. Camisa engomada com os dois primeiros botões sempre abertos. Calça vincada e sapatos impecáveis. O sol da tarde parecia arredondar ainda mais o seu sorriso. Dentes separados e aquela impressão de sempre estar de boca cheia, só não mais característicos que o pingente sobre os pelos do peito.

Minha mãe sondava as palmas entre as cortinas, acostumada com os pedidos de comida, dinheiro ou que tivéssemos em casa. Reconhecida a figura, sorria e trocava o olhar cúmplice comigo de quem já sabia aonde a tarde terminaria. Assim que o portão abria eu já escutava as garrafas apertadas no saco de mercado.

Abraços depois, ele sentava na mesma cadeira na mesa da cozinha, minha mãe não precisava nem convidar. Então puxava um cigarro. Era meu sinal para correr na estante e trazer o cinzeiro de barro, objeto que, lá em casa, além de enfeite suspeito, só tinha utilidade para aqueles dias. Já fumando, me agradecia entregando os doces que dividiam o espaço com as cervejas na sacola.

Seguia o ritual lembrando o réveillon em que me contou quase integralmente um filme de mais de três horas – mais velho, descobri que se tratava do clássico Ben-Hur. Falava, ria e dava mais uma boa tragada no cigarro. Nesse ínterim, minha mãe já havia aberto uma garrafa e ele completava o roteiro bebendo o primeiro e generoso gole de cerveja.

Perguntava sempre do meu pai, mesmo sabendo onde ele estaria, naquele horário e naquele dia da semana. A conversa com minha mãe seguia o protocolo – como vocês estão? – e você, como está? Outra deixa para outro movimento meu, ir para o quarto até o próximo passo.

Era o tempo de as cervejas acabarem. Quanto mais demorava, mais pastosa era a voz que me chamava. “Vai lá e pega mais três pra nós”. Eu achava curioso aquele nós. Minha mãe nunca bebia da cerveja dele, então eu pensava que tinha algo a ver comigo, fazia cara de quem havia entendido uma piada, contava o dinheiro e partia agoniado.

Eu tentava voltar o mais rápido possível, talvez não desse tempo de acontecer, ou, se eu demorasse, já teria passado. Mas nunca funcionou. Toda vez que eu voltava, lá estava meu tio em prantos. Consolado pela minha mãe, lamentava entre um trago e outro. Eu me aproximava, colocava as cervejas na mesa e tentava não chorar junto. Ele me agradecia e eu voltava para o quarto.

Lá pelas seis horas era minha mãe que me chamava. Meu tio estava indo embora. Já não era aquele homem seguro e contente de horas trás. Outro botão da camisa havia se aberto, o sorriso já não se sustentava, tal como ele. Negava o pouso, agradecia minha mãe e deixava lembranças para o meu pai. Do portão, nossos olhares o seguiam até a esquina, onde dobrava até o mês seguinte.

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