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Assim como muitas outras coisas na vida de um se humano, onde cheguei hoje, foi difícil e à base de muita persistência. Mas antes de tudo, preciso lhe situar no contexto geral da história. Um pouco longa, digo eu, mas tentarei simplificar o que puder e ser o mais breve possível.

Nós somos em três filhos de um complicado casal, eu e minhas duas irmãs, basicamente uma escadinha. Primeiro eu vim ao mundo quando meu pai ainda tinha vinte anos de idade e minha mãe mais ou menos uns trinta e dois. Em seguida, um ano e três meses depois, nasceu Lana, que na cultura russa significa reluzente, harmoniosa. E por ultimo nasceu Nadehzda, nome também proveniente da cultura russa que significa esperança.

Nossos pais brigavam muito, e por motivos que até hoje não me preocupei em buscar saber, pois para mim isso pouco me interessa. Cansado de brigas constantes, meu pai saiu de casa, eu ainda tinha somente três anos. Não admiro sua atitude, mas também não o julgo, pois quem sou eu para julgar quem quer que seja?

Quando voltamos a vê-lo, Nadehzda, nossa irmã mais nova, não o reconhecia como pai e chorava constantemente por estar em seu colo, mas isso é outra história que não vem ao caso neste momento. Sei que ele viajou muito e morou por um bom tempo no exterior para obter dinheiro e melhores condições de vida para nós três, filhos dele. Homem de palavra e que mensalmente mandava o dinheiro combinado da pensão alimentícia. Mas nossa mãe estava em caminhos obscuros e todo o dinheiro enviado para os três filhos, ela gastava em noitadas regadas a muita bebida, drogas e homens.

A cada fim de semana que se passava, eu e minhas irmãs conhecíamos homens diferentes que dormiam em nossa casa. Conhecíamos cada gemido que emanava dela nas madrugadas a dentro e não podíamos reclamar, pois ela nos batia se nós atrapalhássemos suas noites de prazer momentâneo. Mas também não a julgo, era livre e “desimpedida”, podia fazer o que quisesse. Mas jamais perdoarei as surras constantes e indevidas, a fome que passei e a falta de afeto. Ela escolheu isso, se entregou ao mundo que queria. E acredito que todo ser humano tem direito a escolhas, mas a partir de suas escolhas, ele deve saber que virão consequências e que deverá arcar com elas.

Com apenas quatro ou cinco anos de idade, não me lembro muito bem, eu fui o pai e a mãe que minhas irmãs não tiveram. Eu comecei, mesmo sem entender direito, a ensinar elas sobre como tomar banho, e que tinham que aproveitar a luz do sol, durante a tarde, pois a água seria menos fria. Nossa casa já não tinha serviço de energia elétrica há muitos meses, e estávamos prestes a ficar sem água.

Café da manhã e outras refeições, assim como almoço, nós fazíamos quando algum vizinho nos dava, mas dava por dó, pois nós pedíamos todos os dias. E quando não ganhávamos nada, eu roubava frutas nos quintais da vizinhança ou caçava pombas com estilingues para poder dar o que comer para minhas duas irmãs mais novas, eu me sentia o pai delas e que era minha obrigação cuidar delas. Mas quando não havia mais saída, eu lhes falava para tomar água pensando em algo bem gostoso, que a água se transformaria naquilo dentro de suas barrigas e a fome iria embora.

Nossos avós paternos viram a situação precária em que nos encontrávamos, na verdade eu ainda acho que demoraram muito para perceber, mas nos levaram para morar com eles. Foi aí que, com seis anos de idade, comecei a conhecer o que era afeto familiar, aprendi a brincar e a ter menos responsabilidade com as duas. Responsabilidade essa que nem era minha, mas eu havia tomado como minha por não ver outra saída.

Frequentei escola e na adolescência desisti dos estudos, mas sempre incentivando minhas irmãs a não desistir. Comecei a trabalhar como auxiliar de mecânico em uma oficina e todo o dinheiro que recebia eu gastava em drogas e bebedeira. Passei dois anos morando na rua e sem ver a família, me drogando. Tive três overdoses em menos de um ano e meio e todas as vezes fui encaminhado ao pronto-socorro e fugia assim que melhorava.

Fui o brigado a me alistar nas forças armadas, assim como todo menino de dezoito anos, e contra minha vontade. Mas garanto que se eu não entrasse, eu já estaria morto. Agradeço muito ao que fizeram por mim nessa faze da minha vida, foi lá dentro que larguei as drogas e decidi passar mais cinco anos como integrante de uma tropa especial e bem treinada. No meio disso tudo, por incentivo de um sargento, voltei a estudar e acabei fazendo meu primeiro vestibular da vida.

No mesmo ano em que dei baixa das fileiras das forças armada eu entrei na universidade. Eu nunca havia chorado por uma coisa boa em toda minha vida, e pela emoção de entrar na faculdade eu chorei e bebi muito, comemorei como pude, sozinho.

No primeiro ano já havia pensado em desistir, mas não por estar difícil, e sim por falta de dinheiro até mesmo para o ônibus e para comer, pois passava o dia todo fora de casa e muitas das vezes sem almoço. Mas no segundo ano tudo começou a melhorar, eu consegui três empregos e a vida começou a desenvolver muito melhor, eu até voltei a sorrir e a ser menos depressivo. Percebi assim, que tudo que passei na vida, me trouxe até aqui, que tudo que estou fazendo agora, está concertando meu passado de alguma forma, e que graças ao meu esforço e aos meus estudos venci as barreiras da vida.

Deus, não sei se posso afirmar que existe, ou se ele existe que eu o ame. Não me faz diferença alguma a existência de um deus ou não. Quando tive fome, sede, angústia, tristeza, desespero e muito mais, não obtive ajuda de deus nenhum. Então, porque eu deveria confiar em algo que dizem ser superior ao ser humano, se nem mesmo necessidades básicas de uma criança ele pode suprir?

Mas agora, com trinta e nove anos de idade, me sentindo cada vez mais maduro, terminando meu doutorado, confiante em mim mesmo, digo a você que tudo valeu a pena, simplesmente tudo.

Acabo de chegar em casa de um show de uma banda que eu jamais havia escutado na vida. Eles se chamam Зажимные патроны¹, e foi a partir de uma música cantada por eles que me surgiu a ideia de escrever isso e compartilhar dores e vitórias com você. Enquanto tocavam uma certa música, eu me lembrei de tudo isso e desabei em choro. A música dizia basicamente isso em seu refrão:

– “В прошлом году я умер, но в этом году я не умираю!”²

Mas esta história é só mais uma dentre milhões de histórias parecidas que existem por aí, e que muitas destas, jamais saberemos.

A única coisa que me resta, neste momento, é dizer a você que nunca desista dos seus sonhos nem que doa muito. Persista e colha seus frutos. Quero dizer também que quanto mais dor você sentir, mais saboroso será o sabor de sua vitória. Saiba que no fundo a dor é necessária para que possamos dar o devido valor às conquistas da vida.

Só mais uma coisa, eu havia me esquecido de me apresentar, eu me chamo Николя Уткинов³, sou brasileiro, músico e professor de português na Rússia nas horas vagas.

 

Москва, 22 июля 2018 г.

 

¹ Chave de Mandril. (tradução do russo / banda paranaense que, dentre muitos cantores, ainda revive as músicas de Belchior)

² Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro! (tradução do russo / música original do falecido cantor brasileiro Belchior)

³ Nycolay Utkynov. (tradução do russo / nome típico de quase todas as regiões da Rússia e sobrenome inventado a partir de dois sobrenomes russos)

 

Mikulis S.A.                                       

 

                                                         31/07/2018

Comentários: 1

  1. Cristiane Leal disse:

    Ualll, confesso que tentei apenas correr os olhos, mas a história foi me envolvendo cada vez mais. Parabéns, vc é uma pessoa incrível e a única que me sorriu em meu primeiro dia de aula. Te admiro muito. Grande abraço.

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