‘Luzes de Niterói’ é tema de mais uma edição do Clube de Quadrinhos

Por Alexandre Douvan

Na última quarta-feira (18), o Clube de Leitura de HQs da Editora Veneta, sob a coordenação do professor Ben-Hur Demeneck, se reuniu na biblioteca da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) do Campus de Uvaranas para debater o livro “Luzes de Niterói”, do premiado autor Marcelo Quintanilha.

Uma odisseia digna de Homero. A história ambientada na década de 1950 vai muito além das aventuras melodramáticas de intriga e reconciliação entre amigos. Em “Luzes de Niterói”, Marcelo Quintanilha consegue fazer com que o leitor embarque no pequeno barco de pesca junto com o impulsivo jogador de futebol Hélcio e o deficiente físico Noel.

Entre as virtudes da HQ está a maneira como desconstrói o preconceito corrente de que histórias em quadrinhos são literatura “baixa”. Suspense e profundidade de sentimentos permeiam a obra, que nos serve como interessante retrato das pressões psicológica e social que recaem sobre a amizade masculina.

Na história baseada em fatos, Hélcio e Noel, cujo apelido é Calunga por sua condição física, avistam ao longe um sujeito pescar com bomba – prática que hoje é considerada crime ambiental, pois mata grande número de peixes e prejudica o meio ambiente. Por pressão de Hélcio, decidem aproveitar e encher um barco de peixes para vender na feira.

O uso de cores vívidas causa impacto no leitor, gerando sentido em cada quadro. A linha narrativa segue da captura dos peixes, a saída para a venda da mercadoria na feira e o retorno ao lar. Contudo, a grandeza da obra está nos núcleos que se constituem em diferentes momentos, como as reminiscências de Hélcio em relação a seus medos de infância, a necessidade de autoafirmação viril de Calunga como maneira de fazer parte daquela sociedade. A história dos personagens, trazida em monólogos interiores e diálogos, compõe a cena de maneira interessante: mesmo Hélcio sendo um jogador de futebol, o esporte se transforma em trabalho e está sujeito a todo tipo de cobrança e estresse ao mesmo tempo em que, fora dos gramados, é um sujeito pobre e comum. Calunga é um retrato sem o estereótipo de “coitadinho”, que muitas vezes se impõe às pessoas com algum tipo de má-formação física; carrega os preconceitos de sua época, tem linguajar afiado e cortante que se mostra como mecanismo de defesa contra os julgamentos diários aos quais está submetido.

A linguagem dos personagens é característica, mas não estereotipada. Quintanilha não dependeu de pesquisa para elaborar o texto pois, niteroiense que é, reconstrói a partir de suas memórias. É um ponto positivo da HQ diante de outras obras do gênero e da literatura em geral, que em muitos casos acaba retratando sotaques e costumes de maneira aviltante ou, então, glorificante. No texto, a linguagem soa natural.

Nesse mesmo sentido é interessante frisar que as notas de rodapé, ao mesmo tempo em que facilitam a leitura explicando questões que já não fazem mais parte do cotidiano dos brasileiros,  são chatas ao travar a leitura com explicações óbvias, de termos corriqueiros como “ideia de jerico”. 

A obra aborda a questão da amizade masculina e das construções às quais está submetida. Não se permite qualquer manifestação de afeto, todo toque ou afabilidade é visto pelos personagens pela lente da sexualidade. É por meio dos xingamentos e dos desafios da virilidade que estabelecem os laços de proximidade – um retrato dos acordos sociais que ainda hoje se notam; ao retratar décadas pretéritas, a obra mostra que ainda não superamos os mais torpes preconceitos.

Quintanilha também recupera aspectos históricos, como a comunidade de naturismo que se instalou em uma das ilhas da baía de Niterói, tendo como líder uma atriz feminista inspirada pelos movimentos que se desenvolviam na França daquele período. Na região viviam pessoas de diferentes grupos sociais, que iam de artistas em busca de liberdade de expressão a fugitivos da polícia que se valiam do local como esconderijo.

Quando os amigos decidem aportar na ilha para oferecer os peixes, logo são recebidos de maneira não muito hospitaleira por um dos moradores, que afirma estar sendo seguido pelos jovens, que na certa seriam policiais buscando prendê-lo. Aí nasce a grande teoria da conspiração sobre a obra: teria sido o habitante da ilha o mesmo homem que estava, mais cedo, pescando com bomba e fugiu quando notou a aproximação de Hélcio e Calunga? Essa é uma questão em aberto que demanda a leitura da HQ para qualquer conclusão.

Após confronto físico encerrado por uma pedrada de calunga na mão do naturista-fugitivo para salvar Hélcio, seguem viagem para a feira em Paquetá. Frustrados por chegarem atrasados à feira, dirigem-se para casa, mas não sem antes serem avisados por um pescador de que uma tormenta se avizinha. Calunga desempenha papel medroso e racional na história, sempre buscando pela opção mais segura; enquanto Hélcio impõe seu ímpeto aventureiro e desmedido.

Lançam-se ao mar e aí se inicia a homérica odisséia de Niterói. A coloração das páginas passa a ser mais escura, criando atmosfera de tensão. É impossível leitura pausada das páginas que retratam a tempestade, pois a angústia pelo desfecho toma conta do leitor. Na cidade, a equipe de futebol aguarda Hélcio na concentração para um grande jogo do Canto do Rio, ou Cantusca (time em que atua como lateral direito), contra o Vasco da Gama. No barco, os ânimos se exaltam. Calunga não perdoa Hélcio pelas enrascadas em que este os colocou, que revida tocando na mais profunda ferida do amigo, chamando-o de aleijado. A forma física se mostrava como motivadora das maiores dores psicológicas de Calunga.

Quando chegam à praia, Hélcio é atendido rapidamente e levado ao hospital. Calunga é deixado para trás, largado à própria sorte. Nesse sentido, a profundidade emocional do livro se mostra cada vez maior. No dia seguinte, Hélcio vai para o jogo, Calunga para o prostíbulo. Ambos em momento de autoafirmação pessoal, cada um à sua maneira, em busca de aceitação. Enquanto um faz o gol do título, o outro se derrama em lágrimas nos braços da mulher que o recebe – por mais que haja forte autoafirmação perante os amigos, em seu íntimo ele sabe melhor do que ninguém de suas impotências e suas dores.

De questões particulares e sociais que o traço de Quintanilha aborda é possível notar a marca de um tempo. Pessoas que se reuniam em torno do rádio para acompanhar o futebol, vestimentas, apelidos. É uma obra de essência visual, da qual se recomenda a leitura.

O livro “Luzes de Niterói”, assim como as demais obras debatidas no Clube de Leitura, está disponível na biblioteca da UEPG em Uvaranas.

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