Na praça, a vida e o ofício de um engraxate

    Em todo lugar da cidade existem pessoas com histórias que precisam, de alguma forma, ser contadas. Todos têm uma perspectiva diferente por conta de vivências que cada um teve o prazer, ou o desprazer, de ter. Algumas pessoas têm vidas mais calmas, outras vivem a própria turbulência. E é esta diversidade que as torna singulares. 

    Por sorte, o visual ameno e uma história calma nunca me chamou atenção. Na praça Barão do Rio Branco, no centro de Ponta Grossa, circulam centenas de pessoas todos os dias. Sentada, enquanto observava o vai e vem de corpos, percebia mentes e pensamentos não muito presentes no ambiente. Procurava ali alguém que me trouxesse uma história de vida tão boa que me levasse a escrever este perfil, sem pressa. 

    Do outro lado da praça, quase que despercebido pela correria do dia a dia de todos, estava um engraxate. Indaguei: “como alguém ainda sobrevive com a profissão de engraxate?”, pois para mim isso era coisa de filme antigo que nada tinha a ver com a minha realidade, e, para minha surpresa, ele sorria. E mais uma vez, a vida me mostrou que a minha realidade é pequena demais para constatar algumas coisas. Respirei fundo, enquanto pensava o que eu podia dizer a ele para puxar algum assunto. Quando me aproximei, ele estava acompanhado de uma mulher, enquanto riam de algum papel que ele a entregara. Logo quando cheguei, ela sorriu, me cumprimentou e se despediu dele. Imaginei, então, que era sua namorada ou esposa, mas logo descobri que não. O homem calmo, sorridente e muito simpático que trabalha todos os dias, desde 8h até às 17h30 na praça, se chama Vilmar Ferreira. E por trás de todo aquele visual “de bem com a vida” existe uma história e uma vida que são, como várias outras, invisíveis para a sociedade.

Em 1976, Vilmar nasceu em Ponta Grossa. Porém, quando casou acabou indo embora para Curitiba. Mas este é um longo percurso. Seu Vilmar nasceu e morou durante a infância no bairro em que vive até hoje, Jardim Marina. Ele foi casado durante 24 anos com sua ex esposa – preferiu não revelar seu nome – e foi como se todo esse tempo tivesse sido apagado de sua história, pois ele evita falar sobre essas memórias.

    Logo que Vilmar casou-se foi embora para a capital do Paraná, Curitiba, onde viveu cerca de oito anos com a esposa. Neste tempo, ele trabalhou no Sindicato de Curitiba com cargas e descargas de caminhão, mas quando perdeu o emprego a relação com a mulher já não estava mais dando certo. Vilmar, então, decidiu voltar para sua cidade natal. Mas agora já era tudo diferente, ele e a esposa tiveram dois filhos durante este tempo, um casal. Bárbara, que hoje tem 23 anos e mora em Guaratuba, litoral do Paraná, mas na época tinha 5, e Mateus, hoje, com 19 anos morando em Curitiba, na época com apenas um ano de idade.

Na época da separação, Bárbara ficou com a mãe morando em Curitiba e o caçula voltou com ele para Ponta Grossa. Quando pergunto como foi cuidar do filho sozinho, Vilmar olha para baixo e diz “deu tudo certo” e fica em silêncio por alguns segundos. Depois ele solta: “foi muito difícil, nem sempre eu conseguia cuidar dele como queria, mas deu tudo certo”. Com 12 anos, Mateus voltou para Curitiba, morar com uma tia por parte da família da mãe, e está lá até hoje estudando e trabalhando. Bárbara casou e foi embora para o litoral, lá ela trabalha e faz um curso técnico. O filho sempre veio o visitar, porém a filha o conheceu faz apenas três  anos – “pois na época ela tinha apenas 5 anos”, relembra. Vilmar diz que a relação com a ex mulher, depois da separação, não foi amigável e, então, ela não o deixou conviver com a menina.

    Quando chegou em Ponta Grossa, novamente, ele decidiu trabalhar de maneira autônoma, pois sabia que não ia conseguir um ‘bom’ emprego por ter estudado somente até a oitava série. Vilmar sabia que trabalhar como catador de recicláveis nas ruas era uma opção para ele, mas também sabia que ia trabalhar muito e receber pouco. Decidiu, então, enquanto procurava um emprego, trabalhar como engraxate. Ele sabia que não existiam muitos na cidade e que se arriscasse nisso podia dar certo. 

    No início de 2010, há 9 anos, Valmir comprou uma caixa de engraxar sapatos e saiu pelas ruas de Ponta Grossa. No começo, ele andava de bairro em bairro e de rua em rua a fim de conseguir clientes, mas poucos meses depois ele se instalou na praça Barão do Rio Branco, onde permanece até hoje.

    Na saída do calçadão da cidade tem início a praça do “Ponto Azul”, como é conhecida popularmente, dividida por uma rua que caminha para o lado do bairro Oficinas. Do outro lado da praça, está seu Vilmar, sempre sorrindo, conversando ou cantarolando. Conhecido pelas pessoas que passam o dia ali ou que atravessam a praça todos os dias, é difícil o momento em que não está cercado de amigos conversando com ele. 

    O dia do engraxate começa cedo. Ele acorda todos os dias dez para as seis da manhã. Toma o seu café, na casa em que vive com o pai, aposentado, nos fundos da casa de uma tia. E às 7h parte para o trabalho. Ele e sua companheira, a bicicleta usada que ele comprou com o trabalho de engraxate e o acompanha até os dias de hoje. Às 8h ele inicia o trabalho no centro. A caixa que ele usa para apoiar os pés dos clientes, a bolsa em que ele guarda as graxas e escovas e a cadeira, confortável, em que ele recebe os clientes ficam guardadas numa sala, na praça, disponibilizada pela Prefeitura da cidade quando retirou a ordem para trabalhar. Ordem, esta, que ele renova a cada ano. 

    Quando pergunto como é o dia a dia dele na praça, até mesmo os olhos dele sorriem. É visível em cada declaração que dá, que ele é muito feliz com a vida que leva. Essa felicidade deve ser porque mesmo não trabalhando em uma empresa ganhando muito dinheiro, ele tem a oportunidade de conhecer pessoas com histórias tão incríveis quanto a dele todos os dias, pessoas que estejam interessadas no que ele tem a dizer e que, também, tenham algo a dizer, ele pode ver as crianças brincando no parque todos os dias sem grandes preocupações. Mas ele diz, apenas, que pode passar o dia observando a correria de várias pessoas, sem precisar correr. No trabalho, ele não ganha muito, é o suficiente para sobreviver. Uma média de 700 reais por mês, mas ele ainda divide os gastos mensais com a aposentadoria do pai. 

    Os meses mais chuvosos são os que Vilmar menos fatura dinheiro, pois não tem como se deslocar para o centro e nem como passar o dia fazendo seu trabalho. Porém, quando está muito calor ele também não têm muitos clientes, pois a maior parte dos clientes usa sapatos quando está mais frio. A manhã é a parte do dia em que o engraxate mais recebe clientes, devido às baixas temperaturas e ao movimento mais intenso na praça, e o dia da semana em que ele mais tem lucro é na quarta-feira. Mesmo assim, ele trabalha de segunda a sábado.

    Na adolescência, antes de ir embora para a capital, o senhor já trabalhava por conta em Ponta Grossa. Exercia a profissão de jardineiro, com casas certas para desenvolver o trabalho. No entanto, quando voltou, não quis continuar a antiga rotina.

    Nas segundas, quartas e sextas o jardineiro, carregador e engraxate ainda é capoeirista. Há 19 anos Vilmar é professor de capoeira e, aqui em Ponta Grossa, ajuda nas aulas de capoeira do Grupo Arte e Vida, no mesmo bairro onde ele mora. Nos domingos, o único dia da semana que fica em casa, ele ainda joga bola com os amigos do bairro. O homem simpático ainda finaliza dizendo enquanto ri: “ficar sem fazer esportes não dá!”.

    Em qualquer momento da vida, a esperança é o que move as pessoas. Não importa no que elas depositem aquela esperança. Tudo que fazemos é focado em algum propósito, por menor que seja. Com o engraxate não é diferente, ele não têm sonhos gigantescos ou que sejam inalcançáveis nesta altura da vida, mas ele sonha em se aposentar. Desde que começou a trabalhar nas ruas, ele paga o INSS todos os meses, na esperança de um dia se aposentar e ter uma vida mais tranquila financeiramente e, quem sabe, não deixar de trabalhar como engraxate. 

    Após, mais ou menos, uma hora sentada conversando com ele, chega um cliente. Botas de cano alto, marrom e sujas. O homem pergunta quanto custa o serviço e Vilmar responde com muita simpatia e educação: “pra engraxar é 4 reais, se for a bota de cano alto inteira, é 8. Para limpar, 2”. O senhor das botas altas pensa por um segundo, enquanto toma um gole de cachaça em uma garrafa plástica, e responde: “quero limpar”. 

Sentou-se e Vilmar começou o trabalho. Não demorou muito tempo para o homem puxar “onde você mora? Você conhece o fulano? Aquele que mora ali perto de tal lugar…” papo vai e papo vem, Vilmar termina o trabalho. Neste tempo em que ele atendia o cliente, um pastor, de alguma igreja desconhecida, que aos gritos falava mal de todas as outras religiões, começa a pregar na praça. Observo o seu Vilmar rindo e balançando a cabeça enquanto olhava para o pastor e aproveito a deixa para perguntar se ele tem alguma religião. Vilmar é católico praticante e, ainda, afirma que ter um apoio religioso é muito importante para ele, por isso ele vai à missa todos os domingos de manhã. Desabafa, também, que tudo que ele tem é a família e a fé em Deus. 

    Me despeço do engraxate com a vontade de passar mais horas com ele, sinto que ele ainda tem muito a dizer, mas os afazeres do dia não me permitiram. Prometi voltar para lhe entregar o perfil e ele sorri agradecendo enquanto afirmava que ele estava ali para qualquer coisa que eu precisasse. E seu Vilmar continua, todos os dias, na praça sorrindo e cantarolando enquanto faz o que lhe deixa feliz. Como todos deveriam. 

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