Beckett renovado

É sintomático que o último espetáculo apresentado no 39º Fenata seja uma montagem inspirada na obra do dramaturgo irlandês Samuel Beckett. É sintomático também que os dois últimos espetáculos do festival tratassem de algo não muito comum, atualmente, nos palcos brasileiros: o nonsense. Ambas as constatações são a prova de que esta edição do Fenata será lembrada por um fio condutor: todos os sete espetáculo da mostra adulta induziram à reflexão. Claro, visto no conjunto, também emocionaram, divertiram, causaram reações de nojo, repulsa, surpresa. Mas todos, sem exceção, fizeram refletir.

O sétimo e último espetáculo da mostra adulta – “Pé na Curva, da Cia de 2, de São José dos Campos (SP) –, apresentado na noite de quinta-feira (10), não tinham a intenção, a princípio, de revisitar Beckett. Porém, o que se viu no Cine-Teatro Ópera foi uma montagem com os dois pés plantados nas peças “Esperando Godot”, “Fim de Jogo” e “Dias Felizes”. No entanto, é um Becket totalmente renovado, com a violência como pano de fundo.

Os dois atores – Jonas di Primo, que também assina a direção, e Jean Yusuke – jogam muito bem entre si. A história é simples. Dois personagens aparecem em um lugar que não sabem onde é. Eles também não sabem para onde vão. O cenário inclui uma árvore estilizada (referência a “Esperando Godot”), uma cadeira de rodas (“Fim de Jogo”), com um enorme refletor, fazendo as vezes de um instrumento de tortura. Tudo com um aspecto pós-apocalíptico, que se percebe, inclusive, no figurino, constituído basicamente de trapos sujos.

Muitos outros elementos das três obras de Beckett estão lá, inclusive dois revólveres, que lembram “Dias Felizes”. Os dois personagens também mancam, em certos momentos, lembrando Clov, de “Fim de Jogo”. Não se deve esquecer que o grotesco e o ridículo de algumas cenas e falas também lembram Beckett.

A cena (interminável) do silêncio entre os dois personagens é um achado. Deixa a plateia em total pânico. E o nu, quando aparece, é bem contextualizado. À guisa de comentário, parece que causou reação maior por parte da plateia o beijo na boca entre os dois atores do que o fato de eles estarem nus. Coisas de público.

Falta, apenas, dosar melhor a acrobacia do início do espetáculo. Do jeito que está, dá a seguinte impressão: “Olha o que eu sei fazer”. Além disso, é necessário trabalhar a pré-disposição corporal nas cenas dos animais e de quando os dois atores executam trejeitos femininos. Sem contar que é preciso melhorar a articulação vocal.

De resto, “Pé na Curva” é um bom espetáculo. Mas ainda tem um longo caminho para percorrer.

*Helcio Kovaleski é crítico de teatro desde 2000, quando começou a escrever para o site Convoy. Desde 2001, publica regularmente críticas sobre os espetáculos do Fenata no jornal Diário dos Campos. Também já publicou críticas de espetáculos que vieram a Ponta Grossa em outros períodos do ano. Entre 2002 e 2004, escreveu críticas de cinema no jornal d’pontaponta e, entre 2005 e 2006, críticas de televisão no jornal cultural Grimpa.

 

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