No momento que decidi escrever sobre a profissão de sapateiro, não pude imaginar o grande trabalho que é consertar “os pés” de alguém. Agora entendo o suficiente para dizer que sapatos, tênis, sandálias, ou mesmo as botas conhecem todos os caminhos por onde andamos. Cheguei na sapataria do Oscar Ribeiro Martim Junior, um senhor de 63 anos, como um sapato para ser consertado. Três anos em jornalismo e a aflição de entrevistar pessoas e escrever um perfil. Sai da universidade às nove horas em ponto, cheguei na sapataria após quinze minutos e dez quadras.
Escondida no subsolo de um prédio na esquina com a Rua Sant’Ana e a Avenida Dr. Vicente Machado no centro de Ponta Grossa, a Sapataria Junior funciona consertando calçados, bolsas e até roupas que as pessoas não querem desapegar. Não julgo os apegados! Sempre há quem tenha um par de tênis que usa até a sola rasgar.
Quando entrei no local o ambiente se mostrou tão claro quanto os corredores de um hospital. Na parede do lado direito, um armário vermelho com compartimentos quadrados estava abarrotado de calçados de todos os tipos, também me deparei logo de cara com um banner de fotografias que cobria toda a extensão da parede a minha frente. As fotos eram de motociclistas, mais tarde descobri que se tratava de fotos do Oscar. Um balcão comprido cortava a sala ao meio, dividindo o local na área de atendimento e área dos clientes. Sob a parede à minha esquerda, bem onde parei e me apresentei para o senhorzinho no computador, notei um número significativo de certificados e diplomas de consagração pública. Eram doze certificados, eles começavam na parede à minha esquerda e subiam até o teto, de lá faziam uma curva, formando um L até a extremidade no meio, bem ao lado das fotografias.
No computador tocava um rock e Oscar estava sentado de frente para a tela em uma mesa atrás do balcão. De pele clara, cabeça calva, vestia uma camiseta com mangas longas e gola polo. A camiseta de cor azul com listras brancas combinava com a cor azul dos seus olhos profundos e um tanto reservados, então ele se apresentou. Pedi que contasse sobre ele, de onde era e se nasceu em Ponta Grossa. Oscar abaixa um pouco a música, mas não a desliga. Notei que, para ele, não importava quem chegasse ali, visse as fotos de motoqueiro ou ouvisse o rock tocando. Assim as pessoas podiam conhecer um pouco da impetuosidade da sua personalidade. Segui com a entrevista, enquanto no ambiente a música deixava tudo mais autêntico.
Vindo da cidade vizinha de Ponta Grossa, Oscar saiu de Castro aos 12 anos de idade e hoje faz cinquenta anos que está trabalhando como sapateiro. “Estudei, fiz o segundo grau. E quando cheguei resolvi aprender uma profissão”. Embora Oscar tenha concordado em falar um pouco sobre si e sua profissão, seu tom de voz firme e suas frases diretas não relataram a extensão de tudo que ele já viveu, mas percebi em seu olhar que guardava muita vivência escondida ali.
“Quando eu abri a sapataria foi nos anos oitenta, quase noventa, e foi pela necessidade de criar a família, cuidar dos filhos e ter o meu próprio negócio”. Antes de toda essa trajetória de vida, era um garoto que ia para a escola e voltava para casa aprender a consertar sapatos, sem distrações. “Na época eu comecei com doze anos, nessa idade eu estudava no período da tarde e pela manhã eu aprendia a profissão com o meu cunhado. Lembro que ficava na loja até meio-dia e uma hora da tarde ia para o colégio e ficava até às cinco, mas às vezes, também voltava para o trabalho, voltava para consertar os sapatos”. Foi assim que Oscar lapidou seu trabalho, seguindo uma rotina regrada. Todas as manhãs na companhia do cunhado ele aprendia algo novo sobre sapatos, como consertá-los, deixando-os novos. Na época nem imaginava que 51 anos depois possuiria uma sapataria com seu sobrenome, e que hoje, ela viria a ser uma das mais antigas sapatarias de Ponta Grossa. “E assim foi minha infância”, disse.
Com o barulho da máquina de costura, junto ao martelar entre sapatos e ferramentas, sentindo o cheiro de cola de sapato e couro no ar, Oscar e mais dois funcionários trabalham sem parar para entregar as encomendas. No entanto, na sapataria apenas ele e mais um funcionário se encontravam. “Quando comecei eu tinha dois funcionários, mas nós também já trabalhamos em dez pessoas. Hoje não, hoje nós trabalhamos em três. Estamos segurando as pontas para ver até onde a gente resiste. O mercado é muito cruel, cada vez mais estão fabricando coisas descartáveis. Coisas com um preço muito baixo, mas que não vale a pena investir”. Apesar da insegurança em relação à profissão, foi com orgulho e anos de experiência que Oscar contou sobre o que é necessário para trabalhar como sapateiro.
“Você tem que ter habilidades manuais, isso é o primeiro ponto. Quando você tem isso é diferente, você já tem um feeling de entender as coisas. Obviamente meus concertos não são todos iguais, cada cliente tem uma necessidade. Precisa ter esse jogo de cintura para entender aquilo que o cliente precisa, aquilo que eu posso atender, não adianta eu só fazer taquinho, ou só meia-sola. Você não vai trocar zíper de mochila, e só isso, os serviços são uma variedade”, explica. Para Oscar, se não tiver esse feeling com o cliente e saber cobrar um certo preço, você não aguenta no mercado.
Nesse instante, após Oscar me contar com orgulho sobre o que é necessário para trabalhar como sapateiro, uma cliente chegou, a única enquanto estive lá. Ele pediu licença e foi atendê-la. A moça era jovem e queria arrumar as fechaduras de sua jaqueta de couro que estava guardada durante o verão todo, como ela comentou. Foi quando pude ver a precisão do olhar prático dele enquanto dizia para ela qual seria a melhor maneira de arrumar as fechaduras de jaqueta.
Ele analisou a jaqueta apenas por alguns segundos, depois chamou seu funcionário e explicou o que era preciso fazer para resolver o conserto. Foi tão preciso e rápido na análise que não pude deixar de notar que o que importava era o ato de consertar, sejam sapatos, bolsas ou jaquetas. Oscar entende o valor das coisas, o valor do tempo, dignifica cada objeto que conserta. Não levou mais que cinco minutos para o problema da jaqueta ser resolvido. Então perguntei de onde vinha tanta prática, de onde brotava todo o cuidado com as coisas, com os objetos, os sapatos que carregam nossos pés, jaquetas que envolvem nossos ombros, e bolsas que levam nossas coisas.
“Sempre priorizei a qualidade”, disse. “E antigamente, quase que anualmente existiam pesquisas de opinião. E durante muitos anos, conseguimos manter a preferência da nossa sapataria na região, mas fazemos sempre esse diferencial, não consertamos apenas sapatos. Assim temos clientes de toda a região que procuram nossos serviços, nós consertamos, é isso que fazemos e é por isso que estamos nos mantendo durante todos esses anos”.
Ainda que a Sapataria Junior tenha bastante clientes, Oscar admite que a profissão de sapateiro está saindo do mercado. “Em Ponta Grossa, antes tinha muita sapataria, hoje tem uma meia-dúzia, se tiver! Então você tem que tentar mudar e abranger um outro nicho de mercado. A maior parte de nosso trabalho hoje é tênis, mochilas escolares ou bolsas, porque trabalhamos muito com costura, coisa que os nossos parceiros de profissão não sabem fazer”.
Contudo, o senhor amante de rock que começou na adolescência a consertar os sapatos das pessoas possui seus próprios sapatos com as solas bastante gastas por conta de todos os lugares que já visitou. Uma das coisas a respeito de Oscar que é difícil não se interessar é sobre suas viagens de moto. Ele não esconde isso, acho que é a segunda coisa com a qual ele se orgulha, depois da sua profissão. Quando você entra na sapataria, as fotos são a primeira coisa que chamam a atenção.
“Ser motociclista para mim é um estilo de vida, eu desde que me conheço por gente e era molequinho, já estava em um triciclo. Então já andei pela América do Sul, conheci novas pessoas, novos costumes. Acho o povo argentino fantástico!”.
Depois de um bom tempo de conversa, Oscar disse que precisava ir, deixando muita curiosidade a respeito de outras histórias não contadas. Nos fundos da sapataria, onde eles faziam os consertos, as paredes eram todas pintadas de azul e o teto muito baixo. Seu funcionário estava sentado na máquina de costura, dando pontos em uma sola de tênis descolada. Ele era preciso com as mãos como uma costureira é ao remendar uma roupa. Olhei ao redor, outros tênis, botas, sapatos e sandálias se espalhavam pelo chão. Tantos quilômetros estavam ali naquela sala quadrada e pequena. Cada calçado trazia um lugar, uma estrada percorrida, uma história, ou várias delas. Ao ir embora, saí pensando que os calçados podem revelar muito sobre nós.
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