No começo de julho, dia 3, nascia “Ilusão”, o novo livro de poesias de Marco Aurélio de Souza. O lançamento acompanhou as limitações impostas pela pandemia de coronavírus, portanto, foi virtual. Natural de Rio Negro/PR, o escritor é autor dos livros “Assombro Zen” (2020), “Os touros de Basã” (2019), “Anjo Voraz” (2018), “Travessia” (2017), “Conexões Perigosas” (2014) e “O Intruso” (2013).
Em uma conversa com o Cultura Plural, Marco Aurélio explica o trabalho árduo da escrita e fala sobre a situação atual do país e da cidade de Ponta Grossa diante das crises múltiplas que fazem com que o trabalho artístico seja completamente modificado. Confira:
Primeiro, gostaria que se apresentasse. Quem é Marco Aurélio de Souza e o que a literatura representa para ele?
Quem é Marco Aurélio de Souza eu não sei, pois o conheço somente de vista – ele ainda não se revelou a mim por completo –, mas pelo que já li dos seus livros, suponho que, para ele, a literatura representa a possibilidade de interagir com o outro e com o mundo de uma forma mais rica e complexa do que aquela da comunicação trivial; mais conforme, portanto, à própria condição humana.
Quais sentimentos perpassam a cabeça de um escritor ao decidir se dedicar à literatura em um período conturbado como o da pandemia do coronavírus? Como foi o seu processo de escrita nesse período?
Embora eu não desdenhe da ideia de inspiração, escrever é uma prática que demanda muita disposição e, nos exercícios de maior fôlego, muita disciplina também. Antes da pandemia, minha rotina de escrita estava bastante regular – eu me sentia disposto para trabalhar e tentava me regrar para que a produção fosse constante. Quando começaram as restrições e, sobretudo, quando os obituários tomaram os jornais, meu emocional virou do avesso, assim como o de tantas e tantas pessoas mundo afora. Inicialmente, este desequilíbrio rendeu um surto criativo. Acordava de madrugada para escrever. “Ilusão” foi todo escrito nesse período, entre os meses de março e julho de 2020. Depois disso, entrei em uma fase mais apática e, de lá pra cá, produzi pouco. Ultimamente, só consigo pensar em como ainda não derrubamos esse canalha ignóbil que ocupa a presidência do país. Bolsonaro tem essa capacidade única de desesperar um país inteiro (inteiro mesmo, porque promove uma inédita política de manutenção do desgosto e das insatisfações não somente entre seus críticos como também entre os apoiadores, que vivem em permanente estado de paranoia), sequestrando toda a nossa atenção para o seu festival de imposturas e desonestidades.
O seu livro de poemas “Ilusão” é uma releitura do livro de Emiliano Perneta de mesmo nome. Quando e como surgiu a inspiração para que essa releitura tomasse forma? De onde vem a admiração pela vida e obra de Perneta?
A ideia de “Ilusão” nasceu de uma visita fortuita ao Passeio Público. Passeando com a família, resolvi fazer uma foto com a minha filha na Ilha da Ilusão, local em que existe um busto do “príncipe dos poetas paranaenses” evocando o lançamento de seu livro mais festejado, justamente o “Ilusão”, que ocorreu ali em 1911. Chegando à ilhota, porém, encontrei dificuldades para responder à filha o que eram aqueles estranhos objetos que estavam jogados pelo chão, entre eles um xaxixo vestido com preservativo. Saí de lá com a ideia de reescrever um poema do Emiliano a partir da imagem decadente do Passeio Público, e foi o que fiz algum tempo depois. Feita essa primeira releitura, porém, entrei numa febre poética junto à obra do Perneta e acabei reescrevendo boa parte da sua obra máxima. A admiração pela vida e pela poesia do autor surgiram somente nesse processo de reescrita. Antes disso, Emiliano Perneta era apenas um vulto para mim.
Comparando os poemas escritos por Emiliano Perneta com suas releituras, é possível perceber muito claramente a sua influência nas temáticas. O que diferencia a ‘Ilusão’ de Emiliano e Marco Aurélio?
Há pelo menos três tipos de poemas em minha releitura do “Ilusão”: aqueles que parafraseiam os temas originais de Emiliano, mas acrescentam uma visão de mundo e uma poética profundamente arraigadas no tempo presente; aqueles que parodiam os propósitos originais do Emiliano, invertendo sua ótica e subvertendo seus temas (a transformação do D. Juan em um tarado ou assediador, por exemplo), e; por fim, aqueles que possuem apenas uma relação periférica com o poema original do Emiliano, através da forma e do tema, mas sem qualquer relação direta com a sua escrita. Penso que, apesar dos motivos roubados do simbolista, os dois livros são expressões de tempos diferentes, portanto se distanciam em diversos aspectos. Enquanto Emiliano estava preocupado com os ideais e com o valor supremo da estética, meu livro passeia por um realismo decadente, onde aqueles motivos foram abolidos ou transformados em uma farsa mercadológica.
Muitos dos temas abordados pelos poemas são ainda mais fortes diante da situação atual, de isolamento e crises múltiplas. Para você, como a pandemia afetou o jeito como as pessoas estão lendo poesia?
Sinceramente, não sei. Percebo que alguns textos, algumas canções, alguns filmes parecem ter sido ressignificados em nosso contexto, à luz do isolamento de parte da sociedade, das estatísticas de mortes e da esperança em dias melhores. Por outro lado, a possibilidade de ressignificação e da releitura condicionada pelos diferentes contextos é uma característica que sempre acompanhou a arte, logo, isto não é algo exatamente novo. A própria releitura que fiz do Perneta mostra como a recepção de uma obra muda ao longo do tempo.
Como você enxerga o cenário da literatura em Ponta Grossa nos últimos anos? Acredita que a visibilidade necessária é alcançada para que autores consigam ter maior incentivo para continuar produzindo arte na cidade?
Vejo esse cenário com bons olhos e o considero muito promissor. Há muita gente escrevendo e publicando, projetos nascendo, editoras funcionando. Somente com a Olaria Cartonera, já publicamos quase 20 autores e autoras da região. Quanto à visibilidade, porém, ela continua deficitária como sempre. Existem bons projetos que poderiam, com um mínimo de apoio institucional, e aí me refiro ao papel da Prefeitura da cidade nessa empreitada, promover e fomentar a produção literária de Ponta Grossa. Não é o que acontece, contudo. É claro que os autores precisam trabalhar para formar público, mas, a depender dos espontaneísmos individuais, a coisa não funciona e jamais irá funcionar. Literatura é sistema coletivo. A Fundação de Cultura continua apostando numa visão capenga do fazer literário, vendo a escrita como um hobbie desinteressado ou um capricho memorialístico das elites. Os que escrevemos com os olhos voltados para o futuro, se não embarcamos nessa visão da “literatura local”, ficamos de lado, praticamente invisíveis. O que o poder público daqui parece não compreender é que os artistas são os maiores interessados na pasta da cultura, e poderiam (mais que isso: deveriam) trabalhar com o mesmo propósito dos gestores: buscando o melhor cenário possível para a cultura da cidade. Lamentavelmente, o que ocorre é que, se você tem um mínimo de senso crítico e o expressa publicamente, você se torna uma espécie de zumbi orbitando o salão social da cultura oficial da cidade. E se, por um milagre, você conseguir uma empadinha com um garçom gente fina, ainda aparece alguém dizendo que você precisa ir lá agradecer ao dono da festa pela fartura do banquete.
Qual é o próximo passo para Marco Aurélio de Souza?
O próximo passo é convencer a mim mesmo que um próximo passo realmente existe, que tudo isso não é apenas uma imensa e cruel ilusão.
O lançamento de “Ilusão” pode ser revisto pelo Youtube, no canal Kotter TV.
Nenhum comentário