‘Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis’ é um passo adiante para a Marvel

Uma das muitas virtudes do gênero cinematográfico Wuxia (contos de artes marciais fantásticos) é a proeza que seus melhores exemplares, como “Herói” (2002) e “O Clã das Adagas Voadoras” (2004), tem de explorarem o que no Ocidente é muitas vezes considerado contraditório em filmes blockbusters: unir entretenimento, mensagens densas e espiritualidade. “Shang- Chi e a Lenda dos Dez Anéis” de Destin Daniel Cretton é uma grata surpresa por abraçar esse gênero e ir além da superfície estética e assumi-lo por completo, ainda que dentro do padrão esperado do estúdio.

A trama do longa gira em torno de Shang-Chi (Simu Liu), um jovem guerreiro exilado nos EUA que é forçado a retornar para sua terra quando seu pai, o poderoso portador dos dez anéis Xu Wenwu (Tony Leung Chiu-Wai), lhe conta sobre como a falecida mãe de Shang pode ter voltado à vida. Nesse trajeto, o herói precisa confrontar os dogmas e lembranças de seu passado para conseguir defender a memória de sua mãe, mesmo que para isso deva enfrentar o próprio pai.

O roteiro do filme, escrito a seis mãos por Cretton e a dupla Andrew e Dave Callaham, é um dos mais inspirados do MCU (Marvel Cinematic Universe) desde o de “Pantera Negra” (2018). O trio segue a forma do script de Ryan Coogler e Joe Robert Cole e une a retratação de uma cultura de forma instigante e digna com o estilo característico do estúdio, ao mesmo tempo que a leva mais a fundo por atê-la às convenções do gênero Wuxia.

Sendo assim, o filme é primoroso quando conta a estória mais através das cenas de ação e imagens do que quando segue a estrutura convencional. Quando os protagonistas chegam à cidade lendária de Ta Lo (um fantástico e intimista trabalho dos designers de produção Sue Cahn e Clint Wallace) o roteiro é surpreendentemente sutil e astuto ao ressignificar um gesto característico e até então banal do treinamento de Shang-Chi. O mesmo vale para a bela ilustração do conceito de ying e yang e suas representações de energias masculinas e femininas através da doce e trágica estória dos pais de Shang.

Outro grande acerto do roteiro é a construção dos personagens. Dos principais aos figurativos, todos possuem características que os destacam e dão mais cores e tons ao universo do longa. A atenção é tanta que, da marca de meia hora para frente, é difícil ver o filme como apenas do protagonista Shang-Chi, visto que sua irmã ChiaLing (Meng´er Zhang) possui tanto destaque, desenvolvimento e personalidade que a fazem ser um personagem igualmente intrigante, se não mais, que Chang.

Isso só faz o trabalho do elenco render ainda mais. Com o histórico de personagens amargurados por relacionamentos fracassados ou platônicos de Leung em filmes de mestres com Wong Kar Wai e Zhang Yimou, sua interpretação soa segura mas sempre surpreendente pelo tanto que consegue expressar com os mínimos gestos, quase como se o personagem fosse moldado sob medida para ele. Leung não tem a alcunha de “o homem que consegue falar com os olhos” em sua terra natal à toa.

Já Yeoh no papel da mestra Ying Nan é uma escolha ímpar.  A atriz que já chegou a roubar a cena  de ninguém menos que Jack Chan em “Police Story- Supercop” (1992) é mais do que apropriada para ser a mestre de Shang-Chi.  

O elenco principal também é muito bem escalado. Simu Liu consegue transitar bem entre o descompromisso que seu personagem possui no começo da estória e a tensão emergente que ele carrega por saber que deverá confrontar seus maiores medos. Vale um destaque também para Akwafina e Sir Ben Kingsley, que sempre acrescentam humor e descontração quando aparecem em cena. Especialmente Kingsley que teve seu personagem, um dos maiores engodos de “Homem de Ferro 3”, repaginado e transformado em uma das melhores surpresas do filme.

A condução de Cretton também merece destaque. Oriundo do cinema indie, o diretor consegue imprimir um ótimo ritmo ao filme sabendo fazer o tom entre o humor, drama e ação trabalharem juntos. Ao contrário do que vimos em “Viúva Negra” (2021), Cretton sabe criar o ritmo das lutas através da movimentação e do uso dinâmico dos cenários e não apenas abusando de micro cortes para dar uma falsa ilusão de frenesi.

 A única ressalva vai para a trilha de Joel West. Compondo sempre em um tom abaixo do que escopo e contexto pedem, a trilha diminui muito do clímax final ao não entoar algo mais imponente. Basta comparar com a trilha de “Aquaman” (2018) de Rupert Gregson-Williams para ver como uma cena específica do final, que possui uma batida de roteiro semelhante a uma do filme de James Wan envolvendo uma criatura mitológica, poderia ter muito mais impacto se o compositor assumisse um escopo mais épico e extravagante.

“Chang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” concede a palavra representatividade um estofo pleno. Mais do que oferecer a novas culturas uma chance de serem mostradas sem o desgosto da ótica estereotipada padrão de Hollywood, o filme é uma grande introdução a um novo universo repleto de personagens e estórias que clamam por serem contadas e acompanhadas. Que venham mais filmes como este, pois com eles o público só tem a ganhar. 

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