Filme “Marighella” é um signo da última década no Brasil

Em 2012 o ator Wagner Moura e o roteirista Felipe Braga iniciaram a escrita do roteiro de “Marighella” (2021), que seria lançado apenas nove anos depois. Na época, o Brasil gozava de certa estabilidade sob a tutela do segundo ano de governo da presidente Dilma Roussef.

Contudo, nos nove anos seguintes em que o projeto foi desenvolvido, tanto o filme de Moura como o país e o mundo passaram por eventos e mudanças drásticas. A produção da obra já começou com dificuldades em 2012 devido ao nome que a comandava e ao tema que abordava:  a vida e obra do deputado e guerrilheiro Carlos Marighella durante seu período com a Ação Libertadora Nacional durante a ditadura militar (1964-1985). Como Moura mencionou durante a campanha de divulgação do filme, “ninguém queria financiar um filme sobre um terrorista dirigido por um petralha”. Reflexo do embrião reacionário que erodiu após as manifestações em massa de 2013.

A produção só saiu do papel graças ao financiamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e uma colaboração entre o SPCine e a Globo Filmes em 2016. Com um orçamento de 10 milhões de reais e uma equipe de cerca de 400 profissionais envolvidos, o diretor tinha uma jornada árdua a percorrer para realizar um longa de ação cuja a cronometragem ultrapassa as duas horas e meia. Para efeito de comparação, “Tropa de Elite: O Inimigo Agora é Outro” (2010), de gênero e abordagem estética similar, possuía o orçamento de 17 milhões, o dobro de profissionais e meia hora de duração a menos.

O roteiro de Moura e Braga é construído à revelia da máxima de Jean-Luc Goddard, em que um filme é inevitavelmente um documentário de seu contexto.  Escrito na primeira metade da década de 2010, o longo é um extrato de parte do legado da gestão Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016).

Empoderando um ícone negro Carlos Marighella da luta armada contra o regime militar, e até escurecendo ainda mais seu tom de pele na escolha do músico e ator Seu Jorge, o filme une de um lado a retórica do ressarcimento histórico nascida de políticas afirmativas e, do outro, a revisão crítica e implacável do passado sombrio da época do golpe militar proporcionada pela Comissão da Verdade (2011). Tudo mediante consulta e aval de grupos e personalidades com autoridade e lugar de fala como a Coalizão Negra por Direitos, o deputado federal  Douglas Belchior (PC do B) e a cineasta Viviane Pistache para combater o complexo de Escrava Isaura: o embranquecimento de ícones negros, que sempre permeou historicamente o audiovisual brasileiro.

Porém, no início das gravações, o Brasil em que o filme foi planejado ruiu. O que começou com um despertar político em 2013 foi cooptado e instrumentalizado por grupos reacionários e se tornou o estopim para o golpe que exonerou a presidente Dilma de seu cargo entre 2015 e 2016. Desde então, um movimento conservador por parte da classe política e grupos da sociedade acabou resultando na eleição de Jair Bolsonaro (2018) para a presidência da República.

Essa cadeia de eventos, potencializada pela pandemia, não apenas culminou numa tripla crise em que economia, infraestrutura e política padeceram no Brasil, mas também na remissão da verba do filme do FSA pela Ancine, subordinada à secretaria de cultura do governo federal, após a recepção forte na première do filme no Festival de Berlim em 2019. A estreia também gerou um movimento virtual organizado para o boicote do filme no site IMDB, um agregador de avaliações.

Hoje, após dois anos de luta para realizar um lançamento comercial nos cinemas e uma recepção pungente por parte do público (com 40 mil pessoas assistindo e uma receita de mais de dois milhões de reais na semana de estreia) e parte da crítica especializada, tanto Moura quanto público se perguntam: Como viemos parar aqui?

O fantasma da ditadura

Para o professor Erivan Karvat, do Núcleo de História e Imagem da Universidade Estadual de Ponta Grossa, a recepção hostil por parte do público que boicotou o filme no site IMDB, a ponto do site alterar o mecanismo de avaliação, está diretamente ligada à relação que o país tem com a ditadura e com o modus operandi do governo Bolsonaro no que tange à cultura.

O professor explica que o longa e sua trajetória por si só já merecem um olhar diferente: “O filme acaba se tornando fundamental para discutirmos esse período que o Brasil perpassa”. Karvat comenta que muita da hostilidade recebida pelo longa, tanto pela parcela mais conservadora do público quanto por parte dos órgãos estatais, é conectada a como o país prefere não lembrar do período da ditadura militar, tema central da obra.

“Não dá para não querer não falar e empurrar o assunto para debaixo do tapete. É um contexto histórico que está aí como um fantasma que irá nos assolar enquanto não for resolvido. O mero esquecimento não fará a gente se livrar dele. Existem traumas do período, então é uma questão de terapia. Enquanto não for tratada e trabalhada, as dores tendem retornar”.

Tal intenção foi também verbalizada pelo diretor durante a press tour do filme.  “Bolsonaro é um personagem profundamente ancorado no esgoto da história do Brasil, que é escravagista, genocida, autoritário, militarista, anti-cultura, anti-pensamento crítico, medíocre”, afirmou Moura durante entrevista ao programa Roda Viva.

O professor Erivan comenta que os eventos que procederam à anistia generalizada após a ditadura foram um empecilho para o defronte direto do trauma social causado. “Após a anistia você tem um período de silenciamento sobre o tema. E isso é um fenômeno brasileiro. Se pegarmos o exemplo argentino, eles levaram militares a julgamento anos depois”.

Karvat argumenta que a diferença entre os dois países aconteceu devido ao tratamento que foi dado aos crimes e aos criminosos no Brasil. ”A dificuldade foi que poucos foram indiciados. Foi duro de até mesmo levar os militares a depor no tempo da Comissão da Verdade. ”

A história em tempo real

Em relação aos atos de censura da Ancine, Karvat argumenta que subterfúgios foram usados, já que não é novidade que a ideologia do filme é conflitante com a do governo. “No 1º semestre de 2019, houve a cassação de um edital que promovia a representatividade LGBTQIA+, e no 2º, houve a suspensão da linha de crédito para a divulgação de ‘Marighella’. A política de filtragem, como Bolsonaro a chamou, nunca foi sutil. É uma coisa absurda, já que ambos projetos e agentes culturais já haviam sido contemplados”.

A gestão Bolsonaro também foi responsável por cortar 43% do orçamento do FSA em 2020. “A produção nacional sobreviveu graças a produção dos serviços de streaming das gigantes do mercado instaladas no Brasil”, afirma o produtor da GP7-Cinema, Gutto Pasko. “Contudo, esse atraso na distribuição causou um grande engavetamento das obras que agora precisam ser escoadas para o mercado e por isso terão ainda menos tempo para competirem com outros lançamentos norte-americanos”, finaliza o produtor.

Tal constipação do mercado impactou na estratégia de distribuição de “Marighella”. Com o orçamento de distribuição limitado a 300 salas, os produtores optaram por privilegiar espaços de cinema alternativos e pré-estreias em sedes de movimentos progressistas alinhados com as ideologias de Moura e da obra.

A decisão causou uma grande concentração de sessões no eixo Rio-São Paulo, região com o maior número desses espaços, e o lançamento dessincronizado em outras regiões. Este foi o caso da cidade de Ponta Grossa, no Paraná, onde o filme estreou com duas semanas de atraso e sessão única.

Mas a reação forte do público que marcou presença na semana de estreia revela uma contra disposição significativa da outra parcela dos espectadores, algo que o professor disserta como mais um indicativo da relevância histórica do filme. “Ele se tornou um veículo para catarse coletiva, já que você se vê na retratação, na figura histórica e naquilo que assiste. Pois tudo surge como uma alternativa que contrapõem aos Ustras hoje em dia que são saldados pelo próprio presidente”, conclui Karvat.

Ao contrário da questão dramática que assola o protagonista do longa, em que seu maior desafio é se conectar com uma população severamente bombardeada pela máquina de difamação e perseguição estatal contra o protagonista, Wagner Moura conseguiu encontrar o elo com a atualidade e o público ao que parece. 

Para Moura, essa comunicação vem da união entre o que é popular e o que é político. “Aprendi com o Zé Padilha durante os Tropas [de Elite] que essa barreira não precisa existir. E isso é algo que serve tanto para o filme e para todo o campo progressista, que de uns tempos para cá parou de se comunicar com seu público”, afirmou o ator e diretor. 

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