Nova adaptação do romance de William Lindsay Gresham pode ser morosa, mas compensa pela atmosfera luxuosa e desfecho arrebatador

O mito de Édipo Rei, de Sófocles, onde o protagonista desconhecendo a verdade é levado a matar o próprio pai e casar-se com a mãe, já foi interpretado de diversas maneiras por vários campos do conhecimento humano. Uma das mais interessantes diz respeito à ilustração da máxima de que o indivíduo que não conhece – ou não compreende – a própria história está fadado a repeti-la e a ruir sua vida ad nauseum.

Beco do Pesadelo, de Guillermo Del Toro, adaptado diretamente do livro homônimo de William Lindsay Gresham de 1946, investe todas as suas fichas nessa interpretação de tons freudianos ao narrar a história do charlatão atormentado Stan Carlisle (Bradley Cooper). Expulso de um circo de horrores junto de sua amante Molly (Rooney Mara), o recém-formado mentalista amador muda-se para a Nova York de 1939 para viver de farsas e ilusões em eventos da alta classe. Como maior que a confiança de Stan em si mesmo é apenas sua ambição, ele se insere em um jogo perigoso de exploração da boa-fé alheia junto da psicanalista Lilith Ritter, sem saber que sua sorte está prestes a mudar.

Del Toro, maior expoente do cinema fantástico contemporâneo, sempre foi fascinado pela relação entre moralidade e desumanização. Seja através do Capitão Vidal (Sergi Lópes) em Labirinto do Fauno (2006), ou do Comandante Strikeland (Michael Shanon) em A Forma da Água (2017), todos os seus grandes vilões são amontoados de obsessões que não se importam de destruir as vidas ao seu redor. Sendo assim, Carlisle faz parte de uma galeria vasta de personagens cujas as obras são movidas primariamente por ódio ao que a humanidade, em particular a masculinidade, tem de mais asqueroso e tóxico. Dessa vez, o diferencial é que Del Toro aborda essa figura humana demoníaca de frente, como motor central da obra.

Aproveitando as possibilidades estético narrativas que gênero noir possibilita, já mencionadas anteriormente, o diretor faz uma intersecção com o estilo épico para oferecer brilho e sangue na mesma medida enquanto narra a saga sobre a derrocada de Stan. Um homem movido por ambição, mas também- mérito dessa versão – pela incapacidade de se perdoar, logo, de também se redimir. Algo que o impele a machucar os que lhe amam e a compactuar com os que o querem morto.

Bradley Cooper pode não ter o garbo de Tyrone Power (que interpretou Carlisle na versão de 1947), mas a inocência e desespero que consegue transmitir com os olhares perdidos faz dele um intérprete escolhido a dedo para o papel. Seu Stan transpira problemas do passado que urgem por serem resolvidos. Sua infância, desprovida de amor, o faz perder oportunidades incríveis de redimir-se aos próprios olhos enquanto o atira para os braços de charlatões tão ou mais inescrupulosos que ele, como é o caso de Ritter.

Toda essa caracterização rica, que fornece a Cooper material suficiente para compor um personagem sólido, vem às custas do ritmo do filme. Por mais que a fotografia de Dan Laustsen e todo o esmero do design de produção sejam um banquete aos olhos – e à narrativa por fazer do brilho e das cores signos da confusão entre realidade e ambição que Stan cria em suas fantasias de grandeza deturpadas -, é inegável que o andamento da metade inicial é moroso em seu desenlace. Tal detalhe não chega a afetar a qualidade final da obra, já que oferece elementos que a justificam, como o mórbido simbolismo presente entre o bebê Enoch guardado por Clem Hotley (Willem Dafoe), e o “geek”, atração macabra do circo. Apenas o restringe a uma parcela do público menos afeita à apreciação do ultra detalhismo estético narrativo do diretor.

Mas para os que estimam obras com riquezas semióticas, o filme é um festim por ir com passos firmes rumo ao desfecho trágico de Stan. Ao contrário da obra da década de 1940, que por imposições executivas foi obrigado a incluir no desfecho uma redenção forçada para seu protagonista, Del Toro usa de uma energia digna do velho testamento para salientar as consequências do mal-uso das habilidades do protagonista.

Entendendo o entretenimento, e por extensão a arte, como uma habilidade mágica cujo a responsabilidade de uso deve ser pautada pela cautela e nunca para explorar financeiramente as fraquezas individuais dos outros, o filme faz do arco do protagonista um conto caucionário brutal – traço inconfundível do melodrama noir e do próprio Del Toro. Se Stan se recusa a agir e evoluir como um ser humano com todas as oportunidades que teve, representadas pela compaixão de Molly, ele não merece ser chamado disso. Logo, só lhe resta a vida de besta bípede que construiu para si.

Ainda que aqui personagens como Zeena (Toni Collete) e Peter (David Strathairn) recebam muito menos atenção e carisma em comparação com a versão de 1947, o novo longa se destaca enquanto exercício competente de gênero. Ao fazer jus ao fatalismo imperdoável presente na obra de Gresham, Del Toro e cia ressaltam a importância do perdão, seja com os outros, com a vida e, principalmente, consigo mesmo. 

 

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