Épico de Robert Eggers oxigena o gênero ao unir a teatralidade Shakesperiana com a fatalidade de Édipo Rei

O conto de “Édipo Rei” é um alicerce da cultura ocidental. A tragédia protagonizada pelo herdeiro do monte Citreão, ainda que comumente simplificada em sua propagação, é rica nos dramas que aborda sobre a condição humana e a dependência de agentes externos que a influenciam, como a família, a criação e os códigos de valores alimentados durante a formação. 

A estrutura e a moral da narrativa de Sófocles mantêm-se sempre em voga por cativar desde estudiosos das mais diversas áreas, como o ícone da psicanálise Sigmund Freud, até grandes contadores de estórias como William Shakespeare em sua peça “Hamlet” (1601) e sua inspiração intermediária, a saga dinamarquesa “A Lenda de Amleth” (Século XVII) de Saxo Grammaticus, que serviu de fonte para Robert Eggers.

O filme adapta a epopeia do príncipe Amleth (Alexander Skarsgard) em sua volta do exílio sedento por vingança contra o tio Fjolnir (Claes Bang), o assassino de seu pai, para o contexto nórdico do século IX. Eggers é sagaz não apenas na condução ultracalculada do longa, mas também nas formas que acrescenta novos sabores e texturas para refrescar a estória tão enraizada no inconsciente ocidental nos últimos séculos. 

Deleitando-se na teatralidade que o texto base provém, algo natural em sua proposta de encenar um conto de formação identitária, o diretor escapa da principal armadilha que tal opção oferecia: a estagnação na teatralidade, no barulho e na pompa como uma justificativa para si própria.

O longa pode seguir as mesmas divisórias da tragédia Shakesperiana – é até ordenado em capítulos e possui dialetos que mesclam pompa e fúria para manter o verniz dramatúrgico – mas ao trazê-la para a realidade dos Vikings, a obra ganha contornos de novidade por ser reforçada por sistemas de crenças, costumes e toques pontuais, mas poderosos, de fantasia próprios dessa cultura que são resgatados e empregados pelo cineasta e sua equipe.

Os movimentos de câmera precisos em concordância com a trilha, o desenho de som e a encenação, simultaneamente emulam a perspectiva onipotente de Odin – divindade máxima da cultura nórdica que narra o prólogo do filme – e a cegueira fanática do protagonista em suas motivações raivosas, arraigadas na herança patriarcal que recebeu como legado do pai Aurvandil (Ethan Hawke).

O diretor, o cinegrafista Jarin Blaschke e o departamento de arte, assim como o roteiro escrito por Eggers e o autor islandês Sjón, criam um universo rico em camadas hierárquicas, simbólicas e metafísicas que enriquecem a experiência do espectador ao fazer tudo possuir uma utilidade não apenas prática, mas também simbólica dentro da narrativa do longa. O melhor exemplo disso são os rituais empregados dramaticamente que são inseridos na trama para conduzir e mostrar que tipo de ideologias e atitudes são enraizadas neste universo.

 Contudo, tal construção poderia soar como uma vaidade técnica sem uma proposta de história que não investigasse as mazelas e contradições do mundo Viking. Ou seja, uma que não tivesse uma visão sólida em termos dramáticos. Felizmente esse passa longe de ser o caso de “O Homem do Norte” (2022). Usando dos artifícios da cultura para imbuir e desenvolver significados que dão sustância ao drama de Amleth – algo que vai da arma do protagonista, seus aliados animais até sua religião – Eggers imprime uma visão que abomina a selvageria e masculinidade tóxica presentes no imaginário Viking e celebra a vitória pessoal do protagonista sobre sua criação equivocada. Algo feito de forma que o conecta aos deuses que venera e o distancia dos valores martelados pelos homens. 

O projeto oferece aos envolvidos, em especial ao elenco, oportunidades de brilhar para além dos arquétipos representados e emprestar mais humanidade ao roteiro essencialmente pautado por símbolos. Enquanto Skarsgard evolui harmonicamente da besta sanguinária para o incauto perante a reviravolta de sua vida, Annya Taylor-Joy oferece uma de suas melhores interpretações ao transcender o arquétipo de Ophélia que lhe é dado. Tendo de ser a ponte entre passado e futuro para o protagonista, sua Olga é composta com equilíbrio entre a docilidade e a coragem para se estabelecer nesse universo selvagem. 

Todos os demais atores são escolhas competentes, sejam em suas pontas ou papéis recorrentes, como é o caso de Claes Bang e seu antagonista mais complicado do que aparenta. Enquanto Ethan Hawke emprega todo o carisma e severidade disponíveis para fazer de Aurvandil uma presença marcante e misteriosa para o resto do filme, Nicole Kidman usa de toda a sua experiência para fazer de Rainha Gundrum o personagem mais complexo e ambíguo do filme. 

O único ponto em que o filme deixa a desejar é talvez a pressa com que inicia o envolvimento de Amleth e Olga. Mas, assim que este é estabelecido, rapidamente floresce para, surpreendentemente, injetar um pouco de ternura e afeto em um longa-metragem marcado pela barbárie. Algo que o faz ter uma alma e pathos para estofar o clímax. 

A mescla do filme entre os polos de violência e amor em uma narrativa tradicional provam a capacidade de adaptação e versatilidade de Eggers, até então definido pelo estilo hermético e instigantemente lacônico de seus filmes anteriores como “A Bruxa” (2016) e “O Farol” (2019). Unindo a fixação por fidedignidade histórica a a coesão narrativa aguçada em “O Homem do Norte”, o cineasta se consolida como um dos nomes mais formidáveis do cinema contemporâneo.

 

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