“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”: Uma saga sobre o poder de ressurgir dentro da própria história

A construção de nossa história de vida perpassa por momentos-chave que moldam não apenas nosso destino como também nossa personalidade. Em algum momento, as questões “e se tivesse sido diferente? Seria melhor? Ou pior?” já nos assolaram. Normalmente, tendem a nos atacar justamente quando nos deparamos com um fracasso que gostaríamos de ter previsto ou ao menos remediado as consequências.  Mas, e se na verdade, todos esses “fracassos” forem o que realmente nos levaram para o que seria a nossa melhor versão?

Essa é a proposta de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (2022), que conta a saga família de Evelyn Wang (Michelle Yeoh) nos desafios que a possibilidade de conferir como suas vidas seriam se tivessem tomado decisões diferentes ao longo de suas trajetórias. 

Em uma obra com tantos gêneros abrangidos, é difícil definir um filme como este. Ele possui tanto elementos de drama existencial, comédia escatológica – principalmente na forma anárquica como o roteiro permite o salto entre dimensões paralelas – quanto de ação e aventura/artes marciais. O que liga construções tão dispares é o coração do filme: a relação agridoce de Evelyn e sua filha Joy (Stephanie Hsu) para criar a liga emocional que sustenta esse exótico espetáculo de possibilidades infinitas.

Ao conduzir a narrativa de Evelyn pelas águas da ambivalência entre poder ser tudo mas nunca atingir o potencial pleno em nenhum lugar, os diretores e roteiristas Daniel Kwan e Daniel Scheinert criam um filme disposto a acolher aqueles que veem na gentileza com os seus o remédio contra a indiferença acachapante que nossa existência, por vezes, nos impõem como técnica de sobrevivência. Se o estupor de saber o que é em outro universo faz Evelyn lutar para mudar sua realidade – apenas para sucumbir ao niilismo quando descobre que também possui desgostos por lá -, é a investigação sobre os pontos-chave que moldaram seu caráter que a fazem evoluir para reconquistar o prazer de viver com os seus.

A versatilidade com que os Daniels (como assinam) criam esse espetáculo equilibra a ternura e os elementos nonsense para florescer uma viagem ora boba demais para ser questionada em sua lógica interna, ora muito profunda para não ser admirável em sua mensagem sobre o poder renovador do fracasso. Algo que agrega para o gênero das artes marciais e o reinventa ao focar não no êxito de tons meritocráticos comum em histórias dessa estirpe, mas sim na dor que ensina, que transforma e nos leva para caminhos que nosso ego nunca nos permitiu enxergar. Um entretenimento criativo e instigante na medida certa na maior parte do tempo.

Dentro de uma chave que alterna frequentemente entre o intimismo e a futilidade, o filme sedimenta sua autenticidade na escolha de basear tais pirotecnias cinematográficas em um conto com um pano de fundo da ancestralidade imigrante dos sino-americanos. O que poderia soar superficial e condescendente se revela uma bem-vinda imersão sem ressalvas em questões arquetípicas da história dessa comunidade nos EUA. Como o valor do esforço, da repressão emocional e escolhas pautadas pela censura patriarcal. 

O que não poderia ser mais moldado para todos os talentos que a atriz, modelo, cantora e artista marcial Michelle Yeoh possui. Despontando no ocidente como ícone marcial desde “O Tigre e o Dragão” (2000), aqui ela encontra o papel quintessência de sua carreira e o interpreta com todas as facetas que é capaz de oferecer à figura prosaica no exterior, mas emocionalmente complexa que é sua Evelyn. Uma atuação poderosa que concede unidade e um rico estofo emocional à espinha dorsal propositalmente caótica do longa. Ke Huy Quang também merece aplausos por dar conta de fazer de seu Waymond o personagem mais divertido e mais deprimido do filme. 

No carnaval felliniano de cores, luzes e sombras que é “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, quem chora, levanta e se diverte é o espectador que, assim como Evelyn, descobre a complexa relação entre miséria, beleza e confraternização que compõem nossa existência. Nos moldes da canção Epitáfio, da banda Titãs, a obra desabrocha seguindo a máxima: “O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”. Viva o acaso.

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