A divina comédia de uma pequena princesa nos grandes Campos Gerais: Veredas

– Pai, o que significa ‘angustifolia’? Assim perguntava Manuela, com seus grandes olhos após ler uma placa diante de uma árvore majestosa em um parque ecológico nos Campos Gerais. Sua inquietação só sossegou quando seu pai lhe explicou que angustifolia era parte do nome científico da araucária, a árvore símbolo do Paraná, cujo significado era ‘folha estreita’. Sua curiosidade coincidia com o orgulho que sentia desde as últimas semanas, quando aprendera a ler frases inteiras acertando a pronúncia correta da maioria das palavras. 

– Como é mesmo o canto da gralha-azul, papai? O dela eu não sei, mas lembro o daquele sabiá que, pelo nome, deve ser fã de laranjas! – Disse Manuela enquanto saltitava pela trilha assoviando o canto flautado do sabiá-laranjeira. Adorava aves, e seu sonho ornitológico de consumo era ver e ouvir ao vivo o tiê-sangue, que vira numa foto sobre a fauna das áreas litorâneas do Paraná. Desde que aprendera a assoviar com sua mãe, Manuela imitava perfeitamente o canto do sabiá-laranjeira, mas ria copiosamente ao tentar mimetizar o imitável e estridente canto do joão-de-barro, e a contração de seus lábios pelas gargalhadas não lhe deixava assoviar novamente. 

Seu pai agora a vê numa paisagem que mais parece um quadro de Dali misturado a traços infantis que também lembravam uma tela de Picasso. Sua pequena princesa é um conjunto de pinceladas do próprio Saint-Exupéry. Mas ao invés de uma sábia raposa, Manu estava cercada – e cativada! – de passarinhos cantantes que lhe ensinavam na prática que o essencial para se entender padrões bioacústicos é invisível aos olhos. No entanto, sua essência não é surda aos ouvidos atentos à sinfonia da natureza, e então orientam Manu a continuar praticando o canto-clim das diversas aves conversantes dali, mas desta vez de olhos fechados e ouvidos bem abertos.

Nisso nota um jagunço com feições femininas aproximar-se de sua filha, que une em uníssono seu assovio ao de Manu, do sabiá e da gralha-azul. É Diadorim, exímia conhecedora de aves de grandes sertões e veredas tropicais. Ao olhar por cima do ombro, vê um homem de óculos redondos e lentes grossas, de zigomas arredondados e cabelo úmido rente ao couro cabeludo, que cultivava pequenas calvícies laterais. É um de seus escritores preferidos: Guimarães Rosa, na idade da foto da aba de seu livro. Prostrado mentalmente em gratidão, se sente como Dante sob a vigília de Virgílio na Divina Comédia. Travessias! Ascenção espiritual! O diabo no meio do redemoinho dá lugar à lucidez de um sonho mágico.

Rodrigo de Mello

Biólogo licenciado e mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutor em Ecologia e Evolução pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Além da profissão, se interessa por literatura, música e artes visuais – e a fotografia tem sido um hobby prazeroso cultivado nos últimos anos. Atualmente é professor colaborador no Departamento de Biologia Geral da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), onde ministra disciplinas de Ecologia e Educação Ambiental.


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