A educação resiste: entre os estudos e os serviços gerais

Subindo a escada externa, no pátio da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), que dá direto à porta lateral do auditório central, deparo com o salão vazio, acontecimento inusitado para quem não é funcionário ou da organização de eventos. As luzes estavam apagadas, exceto por um cômodo pequeno, a Copa, onde é preparado o café dos servidores que trabalham no bloco A. Faltavam 15 minutos. Logo, às 11h30, a famosa tia da limpeza da UEPG chegaria para uma conversa informal. Ali mesmo, nos bancos almofadados de madeira escura, um ao lado do outro, Roseli Vaz de Almeida, 51 anos, mulher, negra, graduada em Letras, mestranda em Estudos da Linguagem e funcionária da Universidade iria conceder o horário de almoço para uma conversa sobre a vida. O que é a vida? 

Enquanto aguardava na terceira fileira do lado direito para quem entra pela porta principal, comecei a pensar nas extremidades sonoras daquele auditório. Neste dia, só estava eu, aguardando a entrevistada. Não tinha pessoas circulando ou conversando, não tinha vozes sendo ampliadas por microfones, era um total silêncio. Às 11h20 da manhã, o único som que preenchia o espaço era da água fervente no fogo, vindo ali de dentro da copa. A água parou de ferver, então começaram os respingos que passavam pelo filtro e caiam na garrafa.  Depois de alguns minutos, voltou o silêncio. O som foi transformado em olfato, pois o cheiro do café pronto e feito na hora inundou todo o ambiente. Roseli saiu toda apressada com uma garrafa térmica de café na mão e avisou que já voltava para conversar.

A porta principal feita de vidro abriu e Roseli entrou no auditório. Estava com jaleco azul – uniforme usado por todas as servidoras da UEPG – o cabelo amarrado em forma de coque, perfeito como aquelas bolas grandes que enfeitam as árvores de Natal. Com aparelho nos dentes, não hesitou e imediatamente abriu um grande sorriso. 

Roseli Almeida é auxiliar de limpeza da UEPG há dez anos e ama o que faz. Nunca quis ficar fechada em uma sala cheia de papéis, como mesma diz, “gosto do agito do campus central, aqui as coisas não são paradas”. É graduada em Letras – Português e Espanhol pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e estava fazendo algumas disciplinas do mestrado em Educação. Neste ano de 2020 ela inicia seus estudos no Mestrado em Estudos da Linguagem. Não pensa em parar de estudar, quer tentar o título de doutora e não existe idade que a impeça. 

Natural de Guarapuava, mudou-se para Ponta Grossa aos dois anos de idade, logo após o pai falecer. “Meu irmão perguntava se eu sentia falta, eu falei para ele que eu não sentia falta do pai, de chamar alguém de pai. Meu irmão se assustou, né, ele tinha apenas seis anos”, Roseli conta que nunca sentiu a falta porque não teve tanto contato quando era mais nova. “Eu tive meus tios, meu avô paterno, que para mim era quase um pai de verdade”. Enquanto olha para cima, como se estivesse caçando os sentimentos pela memória, lembrou da primeira vez que sentiu a perda de alguém próximo, “quando meu vô faleceu, eu tinha 11 anos, essa foi a primeira vez que senti a falta de alguém”, relembra.

 A mãe não teve escolaridade, mas era muito atenta com a localização. “Nunca perdeu um ônibus, se deixasse ela em Curitiba, com certeza iria voltar para a casa”, comenta. A família recebia pensão pela morte do pai. Com quatro filhos pequenos para criar, a mãe começou a trabalhar como cozinheira em restaurantes para equilibrar as despesas da casa. Roseli conta que foi a filha mais mimada, a família sentia pena por ter perdido o pai tão cedo, então cresceu até um pouco egoísta, brinca.

A infância foi dentro de casa, com a família incentivando nos estudos e leitura de livros; ela e seus irmãos não tinham o costume de brincar na rua. Roseli conta que a mãe sempre foi aberta, franca e mostrava os diversos lados da história, mas quem tinha que decidir eram eles próprios: “sempre fomos livres para decidir, lembro quando meu irmão tinha 15 anos e falou para a minha mãe que estava com vontade de fumar cigarro, ela ofereceu um cigarro, mas explicou todos os prejuízos. Ela mostrava o certo e o errado, a decisão é nossa”.

Roseli teve uma juventude livre. Na adolescência gostava muito de sair à noite e achava estranho quando os amigos falavam que não podiam sair porque os pais não deixavam. A mãe de Roseli nunca proibiu de ir a festas, mas sempre alertou para os perigos do mundo e as consequências dos seus atos. Conferindo a hora no celular – tínhamos mais 20 minutos de conversa – lembrou quando experimentou o primeiro cigarro aos 17 anos e conta que nunca precisou fumar escondido da família. Certo dia chegou em casa e falou para sua mãe que tinha começado a fumar. Mais uma vez, a mãe comentou pacificamente: “essas são as suas escolhas, as consequências vão ser suas. Mas só te digo uma coisa, nunca me peça dinheiro para comprar cigarro, quem tem o vício que o sustente”. 

Aos 15 anos de idade, matriculada no 2º ano do ensino médio, decidiu parar de estudar. A irmã mais velha e eterna companheira entrou em coma e a doença desestabilizou emocionalmente toda a família. Embora a família levasse a educação escolar importante, e Roseli fosse uma aluna extremamente focada, decidiu que aquele momento não conseguiria continuar na escola. “Sabe quando você não tem cabeça para mais nada?”, relembra. Foi um ano de idas e vindas ao médico. Logo após o falecimento da irmã, a mãe entrou em depressão. Para não ficar sem fazer nada, decidiu começar a trabalhar. O primeiro emprego foi no salão de beleza de uma prima. Mesmo não gostando de ser manicure, descobriu o dom de fazer unhas, “eu fazia muito bem feito, por sinal”. Roseli começou a trabalhar porque sua mãe havia ensinado a não depender de ninguém. Então, durante esses anos não teve oportunidade de voltar a estudar. Os avós queriam que ela continuasse estudando, mas por rebeldia, decidiu ficar no salão. 

Antes de começar a contar sobre a vivência da vida adulta, Roseli lembrou que precisava passar o dedo no ponto digital e saiu às pressas. Voltou em dois minutos e quase perdendo o fôlego. Ao sentar na poltrona, recitou uma frase que sempre ouvia da mãe: “não é sua cor de pele que vai definir quem você é”, comenta emocionada. Roseli conta que por ser negra e filha de uma mulher branca, as pessoas olhavam diferente. Na opinião dela, o preconceito sempre foi mascarado, quando era nova, não tinha consciência para identificar, mas depois de adulta começou a perceber estranhamentos que antes tratava com normalidade.

Depois de pedir a conta no salão da prima, Roseli começou a trabalhar em dois empregos. Das 8 às 15 horas em um escritório na Balduíno Taques e das 16h30 às 22 horas na franquia de cosméticos e beleza Rainha. Foram dois anos nessa rotina, depois continuou apenas na Rainha. No ano de 2007, prestou o concurso para auxiliar de serviços gerais da UEPG. No final de 2009 foi chamada para trabalhar na Universidade. Quando contou para as colegas de trabalho que tinha decidido trabalhar como servidora, algumas pessoas julgaram. “Muita gente me criticou por sair de um estabelecimento que atendia pessoas de um certo nível e começar a trabalhar com a limpeza”. Foram essas críticas que motivaram Roseli a aceitar o emprego.

Após 20 anos longe das escolas e com 45 anos de idade, decidiu fazer a prova do Enem a fim de obter a certificação do ensino médio. Com a nota inesperada, concluiu o ensino médio através do teste e aproveitou para se inscrever no programa de bolsas do Prouni, passando em 1º lugar no vestibular da Unicesumar no curso de bacharelado em Gestão Pública e aguardando na lista de espera para o curso de Direito da Faculdade Cescage. No mesmo ano e já trabalhando na UEPG, se inscreveu para o curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Após a divulgação da classificação, viu que tinha passado em 3º lugar pelo programa universal, foi um dos maiores picos de felicidade.

Durante a graduação, a funcionária acordava 4h30 da manhã para começar a trabalhar 6h30, ficando até às 12h30 na limpeza. No período da tarde, fazia o curso. Roseli nunca gostou de deixar serviço de limpeza das salas para as colegas, então não almoçava para conseguir limpar tudo antes da aula que começava às 13h30. Ela conta que muitas vezes precisou sair antes da aula para bater o ponto digital às 17 horas e ainda voltar a trabalhar no período da noite. Concluiu o curso em quatro anos, e nos últimos três recorreu ao ensino à distância, devido ao cansaço. 

Roseli é uma pessoa feliz. Não gosta muito de ir na casa de parentes, prefere o “canto” dela. A única parente que visitava era a avó, mas depois que ela faleceu, nunca mais retornou com o hábito. No final da conversa, arrumou os óculos e explicou o que é a felicidade. Contou que ser feliz não é um estágio constante, mas sim, momentos específicos que ficam guardados para sempre na memória. “Se fui feliz naquele momento, ótimo! Vamos esperar o próximo”. Então levantou, eu agradeci e me desculpei pelo tempo roubado do almoço, ela apenas me respondeu: “foi ótimo reviver isso”. 

Produção realizada em parceria com a disciplina de Estudos da Comunicação e Cultura da 3° série do curso de bacharelado em Jornalismo sob a supervisão da professora Karina Janz Woitowicz.

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