A era do Bond de Daniel Craig: o matador que aprendeu a amar – Parte I

A personalidade tradicional de James Bond sempre foi fundamentada no arquétipo do espião bon vivant[1]. Em meio a missões grandiosas, relações casuais com as mais variadas beldades femininas e litros de martini batido e não mexido[2], havia apenas indícios da personalidade do espião que apareciam aqui e acolá conforme era conveniente aos roteiros.  

E nunca se esperou muito mais que isso. O público alvo e os valores de entretenimento tradicionais da série, para bem ou para mal, nunca foram muito diferentes. Como Robert Mackee aponta em Story: Substância, Estrutura, Estilo e os princípios da escrita de Roteiro:  “A espinha de qualquer filme do James Bond, por exemplo, pode ser fraseada como: derrotar o arquivilão. James não tem desejos inconscientes: ele apenas quer salvar o mundo”. As únicas mudanças eram ditadas pelas tendências dos filmes de ação de cada década.

Porém, com o fim da era de Pierce Brosnan, isso mudou. Para se adaptar ao novo padrão de protagonistas complexos com jornadas internas e externas em seu desenvolvimento – abordagem popular nos anos 2000 como a saga de Jason Bourne, Batman de Christopher Nolan e Matrix – a franquia teve de alterar o status quo do personagem para continuar relevante e, principalmente, rentável.

Cassino Royale (2006), reapresentando um ícone

O 007 de Daniel Craig desde o início prometeu ser uma versão diferente de Bond. Ainda que o filme coloque sua rebeldia e desconexão com traços característicos de Bond como proto comportamentos que viriam a transformá-lo no Bond tradicional, Craig é o primeiro intérprete a ter o privilégio de desenvolver tal persona ao invés de apenas recebê-la pronta e mantê-la intocada.

Em Cassino Royale, o diretor Martin Campbell renova, mais uma vez[3], a franquia com uma linguagem audiovisual mais frenética, direta e menos polida. Uma abordagem certeira para apresentar o cerne do novo Bond, mais rústico e menos elegante, e fazer a série voltar a ser envolvente.

Na trama, Bond precisa justificar sua licença 00 para matar. Após seu ego e impulsividade colocarem uma missão em risco, sua superiora M (Judy Dench) coloca em dúvida sua capacidade para o cargo e o pressiona para que ele se torne um verdadeiro matador frio e eficiente para conseguir capturar o terrorista e apostador Le Chiffre (Mads Mikkelsen).

Contudo, o preço para atingir esse objetivo é própria coisificação de Bond. O evento mais marcante da trajetória deste James Bond é a morte de seu primeiro amor, Vesper Lynd (Eva Green), em circunstâncias tão trágicas que fazem Bond jurar jamais se permitir confiar ou se apegar a outra mulher.

Isso muda a chave lógica de seu comportamento padrão. Traços como a promiscuidade sexual e tendência alcoólatra de Bond deixam de compor o chamariz hedonista do personagem para se transformarem em manifestações de seu inconsciente tumultuado e sempre em fuga. A objetificação feminina deixa de ser um hábito como era até então para se tornar um mecanismo de autoproteção a serviço, quando conveniente, do tipo trabalho de Bond. Já o alcoolismo moderado é uma extensão de sua inclinação de suprimir qualquer manifestação de vulnerabilidade, por medo, consciência e remorso, que possa vir a distraí-lo em suas missões.   

Privado do sonho de seguir uma vida normal ao lado de quem ama, Bond ao final do filme é o matador idealizado e cobrado por M para seguir a vida perigosa e fria da espionagem. Porém um que foge do passado com uma ferida que nunca o deixará em paz.

Confira a continuação no Cultura Plural.


[1] Individuo bem-humorado, jovial que valoriza os prazeres da vida e sabe gozá-los.

[2] Drink icônico de Bond.

[3] Campbell foi responsável por reiniciar a franquia em 1992 com o que é considerado o melhor filme da era Pierce Brosnan: Goldeneye.

Nenhum comentário

Adicione seu comentário

Skip to content