Autismo pelos olhos de uma mãe

Mulher de pele branca com algumas manchas avermelhadas pelo rosto, olhos da cor do céu e nascida em Arabutã, no Estado de Santa Catarina, não passa de 1,60 de altura. Cabelos lisos e finos de cor castanho claro, vestia uma roupa simples e confortável, um rabo de cavalo baixo e, no pé, um chinelo pink. Vinda de uma família de classe média, nunca morou mais do que um ano na mesma cidade. Sem ter casa e amigos fixos, é quase uma migrante, já que viveu em Arabutã, Mallet, Mandaguari, Castro, Concórdia e Ponta Grossa, onde está há três anos. Filha de mecânico de máquina pesada que trabalhava em uma empresa de asfalto e de uma dona de casa, tem dois irmãos e duas irmãs, sendo ela a filha do meio. Esta é Janaina Mara Pereira, de 40 anos.

Nascida em 1979, Jana, como é chamada pelos mais próximos, durante a infância e adolescência morou em casas de classe média ofertadas pela empresa que o pai, Conrado Cardoso Pereira, trabalhava. Gostava da vida que levava como viajante, pois conhecia lugares novos. “Aos 10 anos de idade queria casar com um caminhoneiro para sempre estar viajando”, dizia. Mas, ao mesmo tempo, era difícil fazer amizades, já que quando conseguia amigos precisava mudar de cidade. Quando criança, Janaina tinha o sonho de ser professora, até começou o magistério, porém sua mãe a tirou do curso porque ela precisava ajudar em casa. 

Janaina Mara Pereira, 40

Janaina sempre foi uma aluna dedicada, daquela que sentava na frente da classe e com apenas duas explicações do professor já entendia toda a matéria. A lembrança mais viva que mantém de uma das suas escolas foi a que mais sofreu. Em Mallet, a implicância vinha da própria professora, fazendo com que Janaina odiasse ir à escola. Em Mandaguari guarda boas lembranças, porém já aos oito anos pegava ônibus sozinha com Simão, seu irmão mais novo de seis anos de idade e o levava junto para a escola, pois não tinha quem cuidasse dele.

De Castro, também tem boas lembranças, apesar de ter perdido parte da sua infância e toda a adolescência, pois desde muito nova tinha grandes responsabilidades. Precisou se tornar uma pessoa adulta logo cedo para cuidar da casa e dos irmãos mais novos. Aprendeu a cozinhar e em 1988, aos 10 anos, quando o pai ficou doente, já cuidava do irmão mais novo que tinha apenas dois meses. “Eu falo que aos 10 anos a minha boneca chorava, cagava, assava”.

Aos 32 anos de idade Janaina começou o curso de Segurança do Trabalho em Castro. Saía às nove da manhã e só voltava para casa às nove e meia da noite, pegando 10 ônibus por dia. A mãe, Ivoni Maria Pereira, privava a filha de sair, nenhuma amiga ou namorado era bom o suficiente e nada do que fazia estava bom. Janaina almejava a liberdade de uma vez por todas e fazendo o curso superior foi onde encontrou a independência. O curso de Segurança do Trabalho foi reabilitação do INSS devido a uma tendinite no punho que se tornou hérnia de disco por ter trabalhado desde os 19 anos em uma em empresa que fabricava pincéis. 

A implicância da mãe com Janaina não era tanta quando o pai ainda estava vivo, mas depois de sua morte, em 1989, o relacionamento piorou. Não entendia a razão da frieza, sendo que ela sempre esteve ao seu lado. Hoje enxerga como lição tudo o que a mãe fez, mas carrega em seu coração algumas mágoas de histórias do passado que com o tempo não foram esquecidas.

Os cinco filhos eram como uma gangue, quando o mais novo aprontava os quatro mais velhos apanhavam. União que se desfez após a morte da mãe. Os irmãos de Jana, assim que a mãe partiu, a expulsaram de casa sem ao menos ela ter a chance de levar os pertences. Eles nunca mais tiveram contato. 

Janaina e Josué Pereira, que é caminhoneiro há 15 anos, tem uma união estável. A história de como se conheceram pode ser descrita como caso do destino. Mesmos amigos, mesmos lugares e os terrenos das casas que se encontravam. Sete anos e nunca se viram. Mas em 2012, tudo mudou quando Janaina precisou de carona do estágio até a casa de sua mãe e ele foi buscá-la. No começo não simpatizou com ele, tendo uma primeira impressão que com o tempo foi se modificando. Foram se conhecendo, conversando, passavam a noite juntos e o seu jeitinho foi conquistando-a aos poucos. Mas Janaina não queria nada sério no momento, além do seu ex-namorado dar sinais de querer reatar o relacionamento. Ela, então, decide que vai se afastar de Josué, mas acaba engravidando no final do semestre do curso em novembro de 2012. Ela tinha 32 e ele 35 anos. 

Janaina tinha gravidez de risco por conta do útero baixo e já havia sofrido três hemorragias. Ela, que tinha tanta certeza de que seria uma menina, descobriu o sexo do bebê com quatro meses de gestação no dia do seu aniversário. E aí vem a surpresa, um menino! A decisão do nome foi rápida, o pai queria Pedro Henrique, Henrique em homenagem ao falecido cunhado que também era caminhoneiro e uma pessoa muito próxima. Contudo, Pedro foi logo descartado pela mãe que tinha péssimas lembranças desse nome. Foi então que o nome Davi veio naturalmente, e como bons descendentes de italianos, o uso de dois nomes era tradição, resultando em Davi Henrique Pereira. 

Desde a gravidez Davi já apontava sintomas do autismo. Barulho do aspirador, eletrodomésticos ou até mesmo música faziam com que a barriga de Janaina endurecesse e ela sentisse cólica. Conforme os meses de gestação passavam, os sinais eram mais visíveis, o bebê mal se mexia e era quieto. Mas Jana achava que era normal e disse em tom de brincadeira que o filho seria chato como ela. 

A mãe só foi descobrir o autismo do filho quando ele já tinha quatro anos e meio devido ao curso de Pedagogia que ela iniciou, mas precisou parar por conta dos gastos tendo que fazer uma escolha entre o sonho de se tornar professora ou o filho.  Davi, que tem autismo leve, é muitas vezes visto pelas pessoas e por profissionais da saúde como uma criança manhosa, tratando-o com grosseria, indelicadeza e insensatez. 

As pessoas não têm informação e entendimento sobre o que é o autismo e como é ter uma criança autista, de acordo com Janaina. Todas as vezes que sai com Davi, não passa mais do que uma tarde fora de casa. A saída é pensada no filho e para evitar olhares julgadores, comentários desnecessários e muitas vezes ofensivos, além de explicações às outras pessoas, Janaina prefere optar pelo uso de uma camiseta que ela mesma pensou baseado em modelos vistos na internet e mandou fazer.

Davi, 6, com a camiseta “keep calm sou autista”

O uso da camiseta causou uma luta interna em Janaina. Ela achava que isso seria expor demais o filho, até passar por uma situação desagradável no ônibus metropolitano na volta de Castro para Ponta Grossa por estar sentada em um banco preferencial. Uma idosa queria que ela saísse e discutindo com a senhora precisou explicar que o filho era autista. Esse caso a levou às lágrimas e a refletir sobre o que era realmente expor o filho. “É expor ele, mas ao mesmo tempo é ajudar”.

Janaina sempre quis ser mãe. Por cuidar dos irmãos e depois dos sobrinhos, sempre se sentiu como uma. A chegada do Davi foi a confirmação desse sentimento: “é um sonho realizado”. Contudo, ser mãe de uma criança autista exige enfrentar dificuldades e os gastos vêm em dobro. “É você ir do inferno ao paraíso em segundos”. O cansaço psicológico, físico e emocional toma conta e leva ao estresse. Mas ao mesmo tempo, nas palavras de Janaina, é o amor mais sincero que um ser humano tem a oferecer ao outro. Ela se emociona mais uma vez ao falar do filho e lembrar dos momentos que ele acariciou o seu rosto e disse que a amava. “É um amor que ninguém sabe como é. É sincero”. 

Ao pedir para que ela em uma frase resumisse o que é ser mãe do Davi, Janaina dá uma longa pausa e diz: “Fui abençoada”. Em seu braço esquerdo, próximo ao cotovelo, Janaina deixou registrado eternamente o nome do filho com um símbolo do infinito. Acordo que tinha feito com o marido ainda na gravidez, mas que só ela teve a coragem de cumprir. 

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