Branca como uma pluma

Eram 6 horas da manhã e eu já estava com sono, mas é claro, depois de uma noite
daquelas era de se esperar isso. Eu só pensava em ir pra casa e dormir. Um pouco de dor de cabeça era o que eu tinha. Aquela sede infinita, o gosto ruim na boca, e nem sei quantos cigarros eu já havia fumado naquela noite. Tudo que me restava era chegar em casa e dar um bom dia para aquela linda mulher com quem me casei e ir dormir.
Mas nesta mesma hora, 6 horas da manhã, hora esta em que eu já estava quase saindo, eu vi passando por aquela porta uma jovem linda. Aqueles olhos azuis, os mais lindos que eu já havia visto em 47 anos de vida, isso me instigou a saber mais sobre ela e repentinamente meusono passou. Observei bem de perto seus olhos azuis turquesa; sua boca de um vermelho candy apple¹ exorbitante e chamativo; sua pele branca como uma pluma; seus cabelos de um castanho escuro quase negros, contrastando com sua pele clara e aveludada. Mas aquele olhar pálido e sem vida me intrigava e me dava ainda mais vontade de lhe perguntar sobre sua vida.
Para ver mais de perto e mais a fundo cada detalhe tive que retirar suas roupas, com
cuidado, botão por botão, sem rasgar nada, cuidadosamente. Após despi-la por completo, não tive como não tocar naquela pele macia e ainda cheirosa. Com minhas mãos fechei seus olhos ainda abertos e senti aquele frio em sua pele me contagiar. Imaginei inúmeras vezes “como você veio parar aqui?”. Alguém tão linda e delicada, aparentemente cheia de planos para o futuro de uma vida longa e próspera. Planos estes feitos por alguém jovem, de exatos 19 anos de idade.
Observei cada detalhe, pois não posso deixar passar nada despercebido. Unhas cortadas, pintadas e com cutículas bem feitas. Maquiagem, aparentemente bem paga e de alto valor, muito bem elaborada e combinando com a roupa. Seus lindos cabelos recentemente cortados em dégradé² com pontas repicadas, mas sem alguma falha. Roupa de marcas famosas, e por sinal, a camiseta ainda tinha a etiqueta de compra de certa loja no valor de 300 reais. Impossível não perceber que seria alguém da alta sociedade desta cidade, previamente arrumada para uma
noitada casual de final de semana.
O difícil era entender como alguém tão jovem, linda e pertencente a uma classe social de alto prestígio poderia estar extremamente coberta por seu próprio sangue, que jorrava de um buraco de bala no meio de sua cabeça e escorria pelo corpo todo. Em sua bolsa encontramos celular, documentos e dinheiro, todos estes intactos, nenhum sinal de roubo. Mas como, ao chegar aqui, ela tinha sinais de lesões nos braços, suas roupas rasgadas, e posteriormente encontramos sêmen humano em suas genitálias, constatamos que seria mais uma vítima de estupro.
Como alguém, em sã consciência, poderia fazer algo tão horroroso com outro ser
humano? Doença mental? Bebidas? Drogas? Não sei dizer ao certo. Mas como médico legista que sou, em meu laudo consta que uma menina de 19 anos de idade, de sobrenome reconhecido e de grande valor nesta cidade, com um buraco feito por um projétil de calibre .38mm no meio de sua testa, de olhos azuis, boca vermelha, pele branca, cabelos castanho escuro, e com grande quantidade de sêmen humano retirado de sua genitália, tinha sido vítima de estupro nesta madrugada fria de domingo, mais exatamente, dia 27 de junho de 1993, data esta em que estou de plantão na delegacia.
Não me orgulho de ter que dar este tipo de notícia a qualquer família, seja ela rica ou pobre, de pessoas brancas ou negras, mas este é meu trabalho e como sou pago para isso, irei fazê-lo.

Mikulis, S. A.

¹ Candy apple, do inglês doce de maçã / um dos vários tons de vermelho existentes, inclusive utilizado por muitas
marcas de batom.
² Dégradé, do francês degradado, diminuído gradualmente / e também um corte de cabelo muito utilizado
atualmente.