Da música à pintura, de São Paulo ao Paraná: a história do pintor Zunir Andrade

Em 1996, aos 49 anos, Zunir Pereira Andrade Filho mudou-se para Ponta Grossa com a esposa – Eliete Santos Andrade – e com as três filhas – Anna Luiza, Maria Rosa e Mariana Morena. Com a filha mais velha concluindo o ensino médio e sem opção de universidade pública em Itararé, onde moravam na época, Zunir trouxe a família determinado a dar melhores condições de estudo às filhas. O que ele não sabia, naquele momento, é que Ponta Grossa abriria portas inesperadas e, anos mais tarde, ele passaria a ser reconhecido no setor cultural e construir história como artista plástico. Ou pintor, como prefere ser chamado. “Apesar de muita gente falar que eu sou um artista plástico, acho que sou simplesmente um pintor, prefiro assim”.

Zunir Andrade nasceu em Buri, uma cidade no interior de São Paulo. Mudou-se para Itararé com a família quando tinha menos de um ano de idade. É filho de músico, também de nome Zunir, um apaixonado pelos sons, notas e melodias. Naquela época, Seu Zunir [pai] havia sido contratado para tocar em uma orquestra em Itararé e para lá seguiu com a família. Levavam uma vida modesta, já que a música não era uma atividade que rendia muitos lucros, apesar dos esforços que exigia. Depois de participar de uma orquestra, seu Zunir chegou a montar uma banda. Usava o espaço da própria casa para os ensaios. O filho e as duas filhas cresceram em meio ao universo da música. “Convivi desde muito pequeno com a música. Não só pelo meu pai, também os irmãos dele – eram em seis, e cinco eram músicos. Tinham uma banda, estavam sempre na minha casa”, lembra. 

Apesar da afinidade com a música, nem Zunir, nem as irmãs, seguiram o mesmo caminho do pai neste ramo. Na juventude, Zunir até teria tentado estudar teoria musical, mas não teve sucesso. “A carreira não decolou, mas aprendi a tocar instrumento de percussão só por estar naquele meio. Participei de escolas de samba, de grupos de chorinho. A pintura veio aparecer na minha vida muito mais tarde”, destaca o pintor.

Aos 12 anos, ainda moleque, Zunir começou a trabalhar em uma farmácia. Daí em diante, pulou de ninho em ninho e experimentou um pouco de cada trabalho. Começou em uma farmácia, depois passou por um escritório de contabilidade, um cartório… e foi parar nas salas de aula. Praticante de basquetebol nas horas livres, escolheu cursar Educação Física. Em 1976, já não morava com os pais. Ganhou uma bolsa de estudos e foi rumo à Itapetininga estudar na Escola Superior de Educação Física de Itapetininga. Ficou três anos na cidade. Foi lá que conheceu Eliete, através de amigos em comum da faculdade. O encontro, contudo, foi rápido, e ainda não tiveram nenhum envolvimento. 

Formado, queria exercer a profissão, mas a vida tomou outros rumos. Um conhecido da família Pereira Andrade, que tinha vínculos em Itararé e era dono de uma empresa de transportes no Rio de Janeiro, acabou oferecendo ao rapaz uma vaga no negócio. “Fui passar o fim de semana no Rio e passei três anos e meio”, conta Zunir, rindo. Em seguida, voltou para Itararé. Começou a trabalhar na Prefeitura Municipal, como professor de educação física. Simultaneamente, uniu esforços para comprar uma floricultura e ajudar na renda da família. Em meados de 1978, passou a participar de um grupo musical chamado Grupo Sereno, que tocava Música Popular Brasileira em bares da região. “Era um sucesso local”, afirma. 

No fundo, ele sabia que o trabalho não pararia por ali. Em 1979, largou tudo. Fez um concurso para entrar no Banco do Brasil e, de imediato, deixou a Prefeitura, precisou vender a floricultura e o grupo, aos poucos, foi sendo desfeito. No Banco do Brasil, assumiu a carteira agrícola, setor do banco que atendia produtores rurais. A rotina mudou. Precisava acordar cedo e sair de casa por volta das seis da manhã. Viajava para prestar atendimento nas zonas rurais e voltava por volta da uma hora da tarde. Quando chegava, lidava com a parte burocrática do serviço e fazia os relatórios.  

Neste mesmo período, reencontrou Eliete. Em 1982, os dois se casaram, tiveram três filhas e levaram a vida daquela forma por anos. Viram as meninas crescerem no interior de São Paulo. Nos momentos de lazer, a música ainda marcava presença. Além dela, Zunir tornou-se um amante do tênis e gostava de passar horas jogando.  

Quando a filha mais velha estava para concluir o ensino médio, Zunir começou a planejar a vinda para Ponta Grossa. Conseguiu transferência para uma agência do Banco do Brasil da cidade, e a esposa também conseguiu transferir o emprego. Queria que as filhas estudassem, que tivessem uma formação justa. Não havia opções melhores: a Universidade Estadual de Ponta Grossa era uma instituição pública e reconhecida. As outras filhas poderiam encontrar bons cursos por ali. Seria caro mantê-las fora de casa e por isso optou por trazer toda a família. “Eu não tinha condição. Meu cargo no banco não dava um salário alto. Minhas duas primeiras filhas tinham só um ano de diferença e a mais nova três abaixo da anterior. O estudo delas aconteceu quase ao mesmo tempo”, lembra. 

Chegando em Ponta Grossa, ele se adaptou rápido. Procurou um lugar onde pudesse jogar tênis e conheceu pessoas por meio do esporte. Fez novos amigos e viu que talvez o estereótipo do povo ponta-grossense não fosse tão ruim assim. “Se fala muito que Ponta Grossa é muito fechada, que a cidade não recebe bem as pessoas e que o pessoal é muito tradicional e se preocupa muito com ‘nomes’. Mas acho que o segredo era se aproximar das pessoas certas. Também existem pessoas que pensam como eu”, afirma Zunir.

Na cidade, viveu em alguns bairros. Morou cerca de 18 anos no Jardim Carvalho, passou por outras regiões da cidade e hoje mora com a esposa em um apartamento na Vila Estrela. Na vinda, acabou trabalhando por apenas dois anos no Banco do Brasil da cidade e depois se aposentou. “Nunca pensei em voltar para Itararé”, fala Zunir, hoje com raízes em Ponta Grossa. Com o passar do tempo, as três filhas se formaram na UEPG.  

Depois de aposentado, um dia, andando pelas ruas, deparou-se com as obras de Plácido Fagundes expostas nas calçadas. Passou a andar por ali com freqüência e Plácido tentava vender as pinturas. Zunir sempre olhava, atento, e ora ou outra fazia observações que achava pertinentes. “Via os trabalhos dele e ele falava sobre. Acho que ele gostou das minhas colocações e um dia ele me perguntou por quê eu não pintava”, conta Zunir sobre os primeiros passos nas artes plásticas. “Eu sempre gostei de pintura, tive quadros na minha casa. Me chamava atenção. Mas até então, nunca tinha desenhado nada, nunca me interessei”, acrescenta. 

Questionado sobre o motivo de não ter descoberto o talento antes, Zunir diz não aprovar esta ideia de talento. Ele acredita que dom e talento podem ser construídos, e não são sempre inatos. “Sempre fui bloqueado pelo conceito que se tem de dom, de talento. Muita gente não desenha porque diz que não tem dom. Mas com o que aconteceu na minha vida eu posso derrubar essa tese do dom. Eu nunca tinha feito um desenho na minha vida”, frisa. Foi através de um livro de Betty Edwards, intitulado ‘Desenhando com o lado direito do cérebro’, que Zunir começou a estudar por conta própria e entrou de vez no mundo da arte.  

Nos primeiros anos, estudava e pintava pelo menos 2 horas por dia. Algum tempo depois, quando viu que poderia desenvolver melhor a atividade, começou a fazer aulas de pintura. De 2001 a 2008, teve três professores: Rosane Santos, Hélio de Jesus e Astrid Jonker. Neste período, já produzia. Em 2005, fez as primeiras exposições, com pinturas a óleo de paisagens. Ainda assim, buscava aperfeiçoamento, queria entender mais o que estava produzindo. Até hoje, tem preferência pelas paisagens naturais. Gosta de retratar lugares por onde passa e aprecia as imagens paranistas – possui obras retratando trechos de zona rural da região e da colônia Witmarsum, por exemplo.

Para crescer no ramo, Zunir contou sempre com a compreensão e o prestígio da família. Mas foi uma funcionária do setor cultural do Serviço Social do Comércio (SESC) de Ponta Grossa quem deu ao pintor iniciante instrumentos para que ele se sentisse capaz e tivesse força de vontade para seguir. Márcia Sielski era professora, ativista em questões culturais. Ajudou Zunir a expor seus trabalhos, abriu as portas do SESC a ele e fez com que seus quadros virassem notícia, alcançassem mais pessoas e fossem lembrados. Fazia tudo por ele e por outros artistas da cidade. Em 2012, Márcia veio a falecer de um mal súbito. “Nossa, como eu senti a morte dela”, diz o pintor. “Apoio mesmo foi a Márcia. A família aceitou, estava junto, seria difícil não querer que eu fizesse isso. Mas você tem que sentir que vale a pena e ela era uma pessoa que entendia da arte e reconhecia o meu trabalho”, fala emocionado.

Até mesmo na beira da estrada, indo pra Curitiba, Zunir já encontrou inspiração. “Parei, fiz uma foto e, depois de um tempo, lembrei daquela imagem e reproduzi”, explica. Outro fascínio de Zunir Andrade é pelas obras de natureza morta – de interior, de mesas, de objetos. Gosta do realismo, da transparência, da naturalidade da pintura. Há alguns anos, fez parte de um projeto chamado ‘Croqui Urbano’, em que se reunia com outros pintores nas manhãs de domingo, em ruas de Ponta Grossa, para fazer registros da cidade. Tenta não etiquetar um estilo único para a produção – está sempre aberto a ideias que mereçam ser registradas e que tenham um pouco da sua identidade. “Qualquer pintura que você vai fazer, seja baseada em uma fotografia, seja ao ar livre, você sempre coloca alguma coisa tua, uma marca. Você não se satisfaz só com o que está ali”, afirma o artista.

Uma de suas últimas obras, feitas no mês de maio pensando na exposição ‘Maio em cor’, promovida pelo Centro de Cultura de Ponta Grossa, foi uma releitura do quadro ‘Caipira picando fumo’, de 1893, feita por Almeida Júnior. O quadro de Zunir troca o fumo por um aparelho celular com fones de ouvido e, ao lado do homem sentado na escadaria da cada, um maço de cigarros de marca tradicional. À produção, deu o nome de ‘Caipira não pica fumo’. Trata-se de uma sátira, uma crítica social. 

Desde a última mudança de residência, Zunir não possui mais um atelier próprio. Usa espaços de arte na cidade – a PROEX, Pró-Reitoria de Extensão da UEPG, por exemplo, disponibiliza uma sala para o pintor quando não está sendo usada pela universidade. Gosta de trabalhar pela manhã. Para a última exposição, acordava cedo para pintar todos os dias. “O processo não é rápido. Quando se trata de tinta a óleo, você precisa esperar secar para fazer as camadas. Um quadro desses” – diz, apontando para a exposição – “às vezes você demora dez, quinze dias para arrematar”, explica.

Nos horários em que não está pintando, Zunir trabalha com máquinas que fazem a troca de cordas de raquetes de tênis e pratica a modalidade três vezes por semana. Tenta não fazer da pintura um trabalho, mas não gosta de intervalos muito grandes entre suas produções. “Se eu fico dois ou três dias sem pintar eu sinto que estou em falta com o mundo. Tenho que produzir. Não consigo ficar sem. Sinto que está faltando, eu tenho que pintar”, conta, aos risos. O retorno financeiro é muito baixo. Hoje em dia, é difícil vender quadros e, quando são vendidos, têm pouco lucro – não compensam o valor investido nas tintas e em tempo. “Se eu fosse viver disso, não viveria”, pontua. 

Aos 72 anos, Zunir quer continuar pintando e deseja que as pessoas passem a valorizar mais a arte – seja em forma de pintura ou não. Olhando para a exposição de seus quadros no Centro de Música, sabe que muitas vezes aquilo é invisível, despercebido pelas pessoas. “Pouca gente entende e pouca gente vê pintura. Garanto para você que muita gente passa por aqui e não vê. Muita gente vai à minha casa, onde tenho quadros de vários bons pintores paranaenses, e é muito raro uma pessoa olhar para os quadros, perguntar de quem é”, afirma. Zunir lamenta a desvalorização, a dificuldade das pessoas hoje captarem o sentido, a poética das produções artísticas, mas não desiste. Hoje, dá aulas em comunidades carentes para crianças entre 12 e 14 anos e acredita estar contribuindo com uma sociedade melhor. 

“A arte nos torna melhores como ser humano. É um combustível para a autoestima. Acho que estou fazendo uma coisa boa, bonita, que pode influenciar outras pessoas”, avalia Zunir. O pintor também crê na mudança de olhar promovida pela arte e no poder que ela possui para ser disseminada. “A camiseta que você está usando, seu calçado, sua bolsa. Há um artista que desenhou”. Questionado sobre um conselho que deixaria às novas gerações e às pessoas que ainda não experienciaram o apreciar das artes plásticas, aconselha: “Parem, olhem, vejam. Veja se sente alguma coisa, perca um minuto em frente a uma obra de arte. Talvez isso aguce a sensibilidade das pessoas”, finaliza.

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