Dias cinzentos

Hoje, eu reparei que os azulejos da cozinha são meio tortos. Não muito. Passaria despercebido pra mim se eu não estivesse aqui todos os dias, vinte e quatro horas da cozinha por sete dias da semana. Amanhã, meu plano é reparar se o piso do quarto também é torto; nos outros dias, eu reparo nos outros cômodos, um por semana. 

Não sou desocupado, nem mesmo tenho algum transtorno compulsivo. É que são quase dois meses, mais tempo até; nem isso eu sei direito. Os dias deslizam sobre o marasmo da falta de ter o que fazer e fica difícil saber se hoje é sexta ou terça, ou saber se hoje é o final de um mês ou começo de outro. Antes, eu sabia do calendário quando era dia de eliminação ou de paredão. Até isso tiraram de mim.

Não sou preguiçoso, pelo contrário. Sempre fui aquele tipo de pessoa que evita ficar parado e pensar mais sobre o presente; aquele tipo particularmente irritante que fica preso nos sonhos e nos traumas do passado e esquece de prestar atenção no que acontece agora. Costumava passar meus dias estudando, lendo, assistindo e, quando piscava, já era hora de dormir, boa noite, durma bem, amanhã eu faço aquilo.

Quando começou a quarentena, até surgiu um pequeno alívio. Ufa! Alguns dias livres das obrigações do cotidiano… posso colocar aquela matéria ou outra em dia e ler todos os livros que deixei separadinhos na estante; começo por Quincas Borba ou O Nome da Rosa ? As semanas passaram e eu terminei essa lista. Tudo bem, pensei comigo mesmo, vou fazer outra lista. E fiz. Agora, vou assistir algumas séries que sempre quis e voltar a tocar violão. Assisti e desisti do violão; vou fazer outra lista.

E eu poderia continuar, mas a leitura seria chata e você já conseguiu entender. Chegou um ponto que fiz tudo que queria, que planejara e que gostaria. Não fazia um mês direito. Foi quando me vi ocioso e tive que enfrentar meu pior inimigo: minha própria mente. Fui confrontado com todas as possibilidades que essa pandemia poderia me trazer, porque egoísmo não é falha de caráter se for moderado, e para todo o mundo, porque altruísmo é tedioso se for exagerado. 

E não teve problema ficar em casa no início. Eu sou antissocial de qualquer forma, mas como eu estou sentindo falta de sair de casa e encontrar gente. Poderia manter a amizade sem contato físico, mas como eu sinto falta de abraçar meus amigos e senti-los de perto. A realidade é dura e particularmente cruel pra quem a evita de início; ela escorre pelos dedos e apaga os poucos pedaços de esperança que a gente consegue reunir.

O que sobra então? Se a esperança acabou, se o futuro é sombrio, se a saudade aperta o peito e se o grito e o choro ficam presos na garganta, o que fazer da vida? Eu reparo nas paredes e nos azulejos, nas manchas de tinta que encontro e nas rachaduras discretas que ficam nas paredes. Reparo na teia de aranha que cresce no canto da parede, que eu evitei de tirar com a vassoura só pra sentir o tempo passar.

Apresentação do autor
Matheus H. Ribeiro nasceu em Ponta Grossa, em 1999. Faz Farmácia na UEPG e passa o dia ouvindo Morrissey e Legião. Escreve quando pode e quando precisa.


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