Por Matheus Dias
Cabelos grisalhos, pele escura, corpo magro, porém forte. Rugas que não escondem os 62 anos de vida, com aproximadamente 30 deles vivendo em estradas e rodovias ao longo do Brasil. O homem aqui descrito, e cuja história será contada, abandonou a família e tudo o que tinha em Camacan, no interior da Bahia, para andar pela América do Sul, sem um propósito muito definido.
Este viajante gosta de se identificar por Pai Natureza. Sente sua ligação com o chão, com a terra, com as plantas, com o verde de maneira tão intensa, que todos os utensílios e roupas que carrega consigo são pintados de verde. Até mesmo suas unhas, coloridas com tinta de parede.
Pai Natureza é adventista, cristão, tem fé forte, mas não entra em uma igreja desde que deixou a Bahia há cerca de três décadas. Não come carne bovina e nem suína, mas não rejeita um pedaço de peixe. Anda, anda e anda. É tudo o que o viajante faz.
A descrição acima pode não dar conta das façanhas deste homem, mas o viajante solitário diz já ter passado por todos os países da América do Sul. Quando foi entrevistado, foi encontrado entre Santo Antônio da Platina e Jacarezinho, cidades do Norte Pioneiro do Paraná. Porém, seu destino anterior, segundo ele mesmo, era a cidade de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul.
O andarilho tinha um destino definido para sua viagem em curso: Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Dizia que iria para lá atrás da 2ª via de seu passaporte, para poder entrar na Bolívia novamente. No entanto, este nosso vizinho da América do Sul não exige passaporte para que brasileiros entrem em seu território. Não haveria um motivo para que Pai Natureza fosse, portanto, buscar um, ainda mais em Corumbá. Mas, em seus pensamentos, isso fazia algum sentido.
Marcas do personagem
Pai Natureza acredita em tudo o que diz, e criou para si um personagem encantador. O homem de aproximadamente 1,55m de altura anda pelas estradas do Brasil puxando uma carreta de tração com veículos automotores que, sem carga, deve pesar mais ou menos 200 quilos. Além da carreta, que por si só já pesa consideravelmente, o homem carrega consigo 2 carteiras escolares, um botijão de gás, dois pneus reservas (com roda), um fogareiro simples, de duas bocas, para utilizar com o fogão, panelas, roupas e outros utensílios. O peso total deve ultrapassar os 350 quilos.
Quando da entrevista com o solitário viajante, experimentei puxar a carreta para sentir na pele o quão dura seria a empreitada. Tive dificuldade para mover a carreta por dois metros, tal seu peso. Pai Natureza diz que viaja aproximadamente dez quilômetros por dia, descansando aos domingos (ou no dia que acha ser domingo, já que reconhece nem sempre ter noção do tempo).
Sem GPS, sem documentos, sem celular ou qualquer coisa que o ligue formalmente à sociedade ou aos tempos modernos, o Pai sai pelas estradas a perguntar às pessoas para que lado fica tal cidade ou tal estrada, sobrevivendo de doações, seja de roupas, comida e outras coisas que guarda consigo para levar até a fronteira com a Bolívia.
Era um domingo frio quando aconteceu a conversa com Pai Natureza. Ele vestia agasalho e calças feitas com cobertores velhos costurados, amarrados com um cordão grosseiro. Usava na cabeça um chapéu cujo formato lembrava o de Napoleão. O que mais chamou atenção foram recortes de revistas que o viajante plastificou e costurou ao peito de sua blusa. Eram dois recortes colados a uma folha de papel: uma mulher de uns 30 anos, e uma menininha, de uns sete anos de idade, ambas modelos.
Perguntei a Pai Natureza se eram filhas dele, e ele disse que sim. É improvável, pois eram visivelmente modelos de propaganda de moda, e não tinham qualquer semelhança com sua feição. Conforme a conversa prosseguiu, o andante usou as duas mulheres da foto para explicar a lógica da natureza. Sua linha de raciocínio era cíclica. Pai Natureza dizia: “Para que exista a nova (apontando para a menina na foto), a velha (indicando a modelo mais velha) tem que ter existido, e conhecido o diferente [homem]. Se ela fica com uma igual, ‘dá empate’ e a nova não se cria. A nova é a prova da velha, e vice-versa”.
Perguntei sobre a vida de Pai Natureza. Ele dizia ser casado, lembrava com claras lembranças do dia em que se casou, em 82 ou 83, não tinha a data gravada. Havia contraído o matrimônio em uma igreja adventista de Camacan, morava e trabalhava no campo, em plantações de cacau. Quis saber por que decidiu largar tudo o que tinha para andar pelo país. Pai Natureza respondia apenas “É a prova da família”. Tentando esmiuçar a pergunta para tentar decifrar de que maneira se dava essa prova, fiz mais perguntas. Mas o viajante voltava à história de nova e velha, retomava a provação da família, e não saíamos do lugar.
Perguntei ao solitário homem sobre sua família. Se tinha notícias, se tinha saudades, se tinha arrependimentos. Essa pergunta foi a única que Pai Natureza pensou para responder. Durante alguns segundos, o viajante parece ter voltado a distantes memórias e recuperado coisas que talvez não havia parado para pensar. Estava inquieto e parecia indeciso. Até que, de repente, Pai volta a si, enche o peito e fala, com se tivesse raiva: “Eu não sei deles não. Mas eles com certeza sabem de mim, porque minhas viagens são históricas e a fama tá correndo pela América”.
Percebendo o misto de saudosismo, raiva e indecisões de Pai com relação à família, decidi não falar mais sobre o assunto. Perguntei sobre futuro. O que faria depois de chegar a Corumbá. Pai Natureza, que enquanto conversávamos preparava café em sua panela de pressão sem tampa, disse: “Eu estou cansado. Depois de pegar a 2ª via do passaporte, eu vou parar de andar. Eu vou voltar para a Bahia”.
E assim encerrou-se nossa entrevista. No dia seguinte, passei pela mesma estrada onde nos encontramos, e avistei Pai Natureza parado aproximadamente 10 km antes do ponto onde o vi pela primeira vez. O viajante estava apenas a 1079 km de seu destino no Mato Grosso do Sul, para pegar o passaporte. Depois de concluída sua missão, restariam somente mais 2523 km para o grande retorno ao doce lar, em Camacan.
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