Guilherme Silva Safraider, 21 anos. Profissional de Educação Física. Residente em saúde coletiva. Homem trans.
Sentir que estava sendo perseguido e que era o desgosto da família fez com que Guilherme se isolasse do mundo. O choro fazia parte da rotina. O clima em casa era tenso, então ficar na escola era sempre a melhor opção. Mas, como a mãe trabalhava na escola onde estudava, também era vigiado pelas freiras que trabalhavam lá. Guilherme, atleta, também foi proibido, por sua mãe, de jogar por outras cidades.
Aos 14 anos Guilherme se identificou. Para ele foi um período de aprofundamento no autoconhecimento. “Quando vi que não me enquadrava nas expectativas da sociedade sobre o ser mulher e ser feminina, me sentia esquisito”. As lésbicas mais masculinizadas eram a única referência que envolvia as característica do sexo biológico e o desejo de ser mais masculino.
Entre 17 e 18 anos entrou na Universidade, lá começou a melhorar. Era um ambiente novo e com pessoas diferentes. “Universidade em alguns casos é libertador né?!”. Nessa época já aceitava que não era possível ser o que os outros esperavam. Mas, mesmo assim, não estava satisfeito com a condição de ser mulher. Os questionamentos vinham: “era tão ruim assim para todas as mulheres?”. As roupas, os papéis e o corpo não o agradavam. E assim, vieram muitas pesquisas em sites, páginas das redes sociais e canais do YouTube acerca do assunto.
A partir disso, mesmo com muita insegurança, começou a se identificar como homem trans. E nesse momento a família era uma grande questão. Ter que decidir algo tinha um peso muito grande. O medo de sofrer novamente era constante, ainda mais nesse momento em que a relação em casa tinha começado a melhorar.
Dos 18 aos 19 anos preferiu manter o que sentia em segredo. E, nesse período, surgiu a ansiedade. O sentimento de culpa e de estar errado fizeram com que Guilherme começasse a se automutilar. Com o passar do tempo e muita terapia, a aceitação surgiu. “Depois que a gente se aceita fica muito mais fácil lidar com os preconceitos das outras pessoas”, afirma.
E pouco a pouco as mudanças foram ocorrendo. Na adolescência foram as roupas. Com 18 anos veio o corte de cabelo: “não é uma característica que deve ser de homem, mas para mim era importante”. E depois começou a se identificar como homem trans nas instituições, sendo familía, amigos, Universidade. E assim adotou o nome social.
Na sequência Guilherme foi encaminhado para um centro de referência em Curitiba. Neste momento começaram a surgir as transformações corporais. A primeira mudança foi a voz, depois os pelos do corpo foram aumentando aos poucos e o tamanho das mamas foram diminuindo.
O que não mudou foi o comportamento de Guilherme, “continuei fazendo e falando coisas do meu jeito”. E dessa forma, ele acredita que influenciou no sofrimento e na aceitação, pois para ser homem não precisa ser a concepção de macho, “que coça o saco, arrota e pede pra mulher trazer mais uma cerveja”. Ele completa dizendo que é possível deixar características que gosta e descartar aquelas que não se identifica, como qualquer pessoa no mundo.
Momentos de desconforto e preconceito
A Universidade foi um desafio. Na educação física tudo é separado por mulher e homem, como os vestiários, banheiros da piscina, o chuveiro feminino é separado um do outro, o masculino é coletivo.
Para fazer a avaliação física o professor solicitou que meninos ficassem em uma sala e meninas em outra. Na hora de realizar a avaliação antropométrica era necessário tirar a roupa. “Já não me sentia bem de ficar com mínimo de roupa na frente de qualquer outra pessoa aí teria que ficar no meio de todos os homens”, conta Guilherme ao explicar que no momento ficou sem saber o que fazer. E ainda questiona o motivo para isso, pois em sociedade não vivemos separados dessa maneira.
Guilherme sempre gostou de participar de jogos. Em 2017, na época dos Jogos Inter Atléticas (JOIA), fazia 6 meses que estava em hormonização. Nesse período Guilherme já usava nome social, mas não tinha mudado os documentos. Sua equipe, com medo de acabar sofrendo algum tipo de punição, levou a situação para reunião e Guilherme foi pauta específica no JOIA. E naquele ano teve que apresentar exames de sangue para que pudesse jogar.
Em 2018, a situação foi discutida novamente. Para que pudesse jogar teve que mostrar todos os seus documentos já alterados. “Em um momento não era mulher suficiente e depois não era homem suficiente”, destaca.
Durante sua vida já recebeu diversos xingamentos. Entre eles: menina macho, “é menina ou menino?” e também chamado de sapatão. Guilherme diz que não vê sapatão como um xingamento, mas a forma que as pessoas utilizavam esta palavra era para tal finalidade. Com o tempo os xingamentos diminuíram e as pessoas passaram a sexualizar demais. Falas como “o que tem entre as pernas?” (não sendo joelho a resposta que querem) e “te acho bonito mas você não tem o que elas gostam” se tornaram comuns.
Acompanhamento
A estrutura que o SUS oferece em casos como o de Guilherme é de qualidade. Primeiro é necessário passar pela ONG Renascer, onde é feito o acolhimento e as sessões de terapia individual com psicólogos. Depois é feito o encaminhamento para o Tratamento Fora de Domicílio, na 2° Regional em Curitiba, onde tem o Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais (CPATT). O CPATT conta com o atendimento de psicólogos e endocrinologistas. A medicação com hormônios também pode ser retirada pelo SUS.
Levando em conta a documentação, desde 2018 a retificação de nome acontece diretamente em cartório, sem precisar de um processo judicial. É necessário levar alguns documentos para ser feita a alteração.
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