Engarrafaram o giro cultural: programação cultural e alternativas de mobilidade urbana

Vamos combinar que não dá mais para ir a qualquer evento cultural. Há pouquíssimo tempo, era quase uma diversão migrar de evento em evento, na mesma noite ou por dias seguidos. A cidade mudou, algumas coisas da realidade também. Isso já não é mais tão possível assim. Se o evento termina depois das 21h, complica voltar para casa de ônibus e a pé. Se inicia ali pelas 19h, complica também para quem vai de carro. Os problemas de mobilidade urbana atingem em cheio as opções culturais.

Deveria ser regra que evento com algum tipo de financiamento público (municipal, federal…) tivesse que dispor um circular para facilitar idas e vindas do público. Caso contrário, utiliza-se do dinheiro público para armar a estrutura e aí o evento termina por limitar o acesso de quem o bancou. Isso tem a ver com escolha de horários na agenda cultural, locais, estratégias, preços e demais formatações. A continuar da forma como está, alguns bairros jamais vão dar as caras pelo centro para ir a uma livraria, conferir um teatro gratuito ou um espetáculo da orquestra. Isso é justo?

Tanto o Festival Literário Internacional dos Campos Gerais (Flicampos) como a Semana Literária do Sesc foram vítimas e participantes ativos desse contexto problemático que a cidade enfrenta (por não ter mais para onde desviar). Testemunhei em várias palestras a turma das 21h ou das 21h30 levantar em conjunto e ir embora correndo. Antes o fenômeno era ‘privilégio’ dos colégios e das faculdades… com estudantes de outros municípios. Agora ele já atinge os próprios moradores de Ponta Grossa.

Muitas vezes não é por vontade e muito menos desinteresse, mas uma imposição das condições de circulação do município – com um transporte coletivo que desaparece nesses horários, taxistas insuficientes e desatentos a esse tipo de demanda, e, sobretudo, falta de iniciativas pontuais que compensem essa ineficiência. Nem que fosse apenas em função de tais eventos, já seria um começo.

Quando chegar a Munchen, vamos contar os corpos acidentados nos jornais novamente? Ou haverá ampliação de horários e carros que incentivem o uso do transporte coletivo? E durante o Fenata? Vai acontecer como todos os anos? Quantas pessoas não gostariam de ficar para os prestigiados debates após o espetáculo da noite e não podem se dar a esse ‘luxo’, porque depois das 23h complica ainda mais chegar em casa?

Provado que a empresa concessionária não tem dado conta do recado, o que fará a prefeitura nesta nova gestão? Estudar o problema seria um começo interessante. Difícil imaginar que o Conselho de Política Cultural não tenha alguma informação ou não possa prestar algum auxílio nesse sentido. Afinal o Plano Nacional de Cultura salienta a dimensão cidadã da cultura – isto é, no sentido mais estrito, ela deve dar acesso à cidade.

Um problema correlato no Flicampos foi o espaçamento da programação. Intervalos entre as atividades e horários durante o fim de semana são decisivos. Com a alta circulação de pessoas pelo sábado à tarde pelo centro, vale a pena manter a palestra principal para o turno da noite? E domingo, por que não aproveitar melhor o dia para deixar a noite livre para aquilo que todo mundo faz domingo à noite?

Em que pesem todos esses fatores, o público pareceu razoável nos dois eventos literários. A prestação de contas do Flicampos deve trazer mais detalhes em breve, espera-se. Mas convenhamos que não adianta em nada fingirmos que esses problemas não existem e de que não seria possível atrair e pluralizar os públicos, para que os espaços assumam ainda mais a cara da cidade. Deixar a locomoção para o âmbito das decisões privadas e individuais seria assumir uma feição em nada pública da gestão cultural – outro estímulo aos guetos motorizados que já dominam alguns ‘points’ da noite princesina, como bem sabem as blitz da Polícia Militar.

Em várias circunstâncias, colocar atrações no centro da cidade torna a programação mais democrática – dada a ligação entre bairros ser pouco praticável, ainda e historicamente, para amplo contingente populacional. Mas talvez tenhamos um problema mais pontual e urgente a resolver, que é o de como tornar o centro mais habitável e facilitar os deslocamentos dentro da própria região central de Ponta Grossa. Está na hora dos espaços culturais terem algum lugar no planejamento urbano e na discussão de uma outra cidade.

Texto de Rafael Schoenherr*

* Jornalista e professor, frequentador das feiras literárias, em busca de livros baratos e discussões instigantes.

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