Entre o crime e a lei: a crítica política de um morador de rua

    Por Alexandre Douvan

Às 18:30 da sexta-feira, 19 de outubro de 2018, na rua Riachuelo ainda molhada pelas fortes chuvas dos três dias anteriores, uma voz aborda os passantes. “Com licença, senhor, boa noite! Sou morador de rua e vendo estas paçocas para sobreviver”. 

    Sempre que alguém afirma ser morador de rua, a primeira coisa que passa pela cabeça é querer saber o porquê de estar naquela situação. Receptivo, aceita o convite para sentar-se em um dos bancos da Praça Santos Andrade, em frente à UEPG. “Rapaz, se eu te contar a história da minha vida até eu parar aqui, dá para escrever um livro”. Aquele foi o primeiro e mais longo dos nossos três encontros ocasionais.

    Gelso Ferri tem 49 anos de idade e passou 27 deles preso por homicídio. Perdeu a esposa assassinada e estuprada e tem um filho, uma filha e cinco netas. Desacredita o modelo político vigente, não crê ser saudável para a democracia que um partido passe mais de uma década no poder e julga a proposta de armar a população como meio de promover um genocídio. Com uma vida repleta de experiências marcantes e uma retórica fluída e demarcada por pausas tchekhovianas, conta sua história, demonstra esperança na sociedade e desgosto com os rumos da política nacional. 

    Escrever um livro é a maneira que encontrou para mostrar à sociedade um lado da realidade onde a distopia impera. Sua meta literária, porém, enfrenta as barreiras do preconceito contra moradores de rua, a falta de tempo e dinheiro para escrever. Em suma, o sonho lhe parece distante, mas é o que o move no dia a dia.

    Ferri não é um homem simplista. Para explicar o porquê vive na rua é necessário primeiro dizer quem é. Natural de Telêmaco Borba, onde vivia com a esposa que fora brutalmente assassinada. “Para o sujeito estuprar minha esposa, deu uma bordoada na cabeça dela com alguma coisa contundente, matou na hora e o infeliz ainda a estuprou”, explica com os olhos marejados. A esposa de Ferri foi encontrada oito dias depois, já em estado inicial de decomposição. Após o falecimento da esposa, não fez mais nada que procurar pistas de quem cometeu tamanha atrocidade. “Na minha cabeça era assim: se eu souber quem é, não vou mandar para a cadeia, vou matar”.

    Mas o tempo também ensina e Ferri percebeu que matar não era a solução, pois pagaria pelo crime de outra pessoa. Para tentar livrar-se do pensamento que o perseguia, decidiu mudar de cidade e assim parou em Ponta Grossa, pois sua mãe aqui vivia. Estabeleceu morada e há pouco mais de um ano foi trabalhar em uma plantação de fumo em Joinville (SC). Saiu dos Campos Gerais pesando 78 quilos, voltou pesando 40 e usando fraldas por quatro meses. Motivo: intoxicação por agrotóxicos em uma lavoura de fumo.

    Sem direitos trabalhistas assegurados já não conseguia “honrar o compromisso do aluguel” – como ele mesmo define –, no dia 20 de maio de 2019 completaram-se 17 meses que a rua virou sua casa.

    Hoje o único contato que mantém com a filha, que mora em Carambeí, é por mensagens de WhatsApp que a esposa de um colega faz o favor de enviar. De vez em quando vai à casa desse colega para conversar, tomar banho, lavar a roupa e mandar notícias de seu paradeiro para a filha e saber como estão suas netas. Do filho, falou apenas quando questionado e de maneira sucinta. Prefere ficar na rua a ir morar com a filha. “Se eu for morar com ela, algo vai faltar para as minhas netas e no fim vamos todos para o buraco. Se eu tiver um emprego, claro que irei”, conta enquanto apoia uma mão no guarda-chuva e equilibra o pote de paçocas na coxa esquerda.

    A vida na rua

    Morar na rua é uma penúria. Na primeira noite que passou ao relento, diz ter levado uma paulada na cabeça que lhe rendeu 15 pontos – gesticula mostrando o local exato entre o curto cabelo que começa a esbranquiçar. Roubaram-lhe as roupas e o celular que carregava. “Depois disso, vivo matando um leão por dia, vendo paçoquinha para sobreviver e não ter que incomodar ninguém. Também não julgo ninguém, mas não acho legal o que os outros moradores de rua fazem, pedir dinheiro de graça para as pessoas, porque eu sei que conseguir dinheiro é difícil para todo mundo”, conta. “Às vezes deixo de comprar uma marmita para comprar um pote de paçoca, vender e ganhar meu dinheirinho deste jeito, mas é difícil porque enfrento muito preconceito, muita generalização”, explica.

    “Para quem não conhece, se está na rua é vagabundo, é drogado, é bêbado”, reclama Ferri, que não bebe, não fuma, não joga. “Não tenho vício nenhum a não ser beber muita água e tocar meu violão”, fala enquanto dá um sorriso, deixando à mostra seus dentes gastos e outros que faltam na boca cercada por uma barba rala meio branca e meio preta. A falta de banho também o incomoda, lembra que havia um espaço no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) onde podia tomar banho, mas por conta da má administração, da falta de limpeza e cuidados básicos, a Vigilância Sanitária interditou o local.

    Hoje, quando precisa tomar banho, paga R$ 7 para usar o banheiro de um hotel. “Sabe quando a pessoa não precisa do teu trabalho mas chama para ajudar a descarregar um caminhão só para te ajudar?” – obviamente não sabia como era passar por aquilo, mas Ferri prossegue – “então, com o tempo fomos criando uma relação e de vez em quando, para não gerar muito custo para ele, peço para usar o banheiro do depósito que ele tem sob a loja”.

    Passa as noites ponta-grossenses, muitas vezes frias e inóspitas, deitado sobre pedaços de papelão na frente da agência dos Correios da Rua Augusto Ribas. Evita o contato com vários outros moradores de rua, pois afirma que seus assuntos são acerca de drogas e planos para  pedir dinheiro e comprar álcool, coisas que afirma não consumir e nem gosta de falar sobre. É naquele local que nos encontramos pela segunda vez, já em 2019. Sentia fome, não comia há três dias, reclama do frio. Lembra de mim e diz que é esse o tipo de coisa que quer contar no livro, mas não tem nem papel.

    Alerta que estar junto com as pessoas é perigoso. “Eu sei onde estive durante o dia, sei o que fiz, mas não sei o que os outros fizeram. Não desprezo, mas é um mecanismo de autodefesa. Acham que sou um mendigo orgulhoso, mas vivo sozinho para evitar confusão”. 

    Nas palavras de Ferri, quem pede dinheiro na rua, o faz para manter vícios e vício é luxo. Lembra de uma frase do avô: se quer fumar, tenha a palha, o fumo e o acendedor porque ninguém é obrigado a sustentar o vício alheio. “Quem pede alimento tem necessidade, quem pede dinheiro quer manter luxo” são as palavras que usa para descrever a realidade das ruas.

    Julga, ainda, que a bebida alcoólica é o maior problema, muito além das drogas ilícitas. A bebida é muito acessível e de baixo custo, diferente das drogas e frisa que o prejuízo não é apenas para o viciado, mas para sua família e todos ao redor na medida em que afeta o comportamento.

    Se há uma constante na rua, chama-se preconceito. “Principalmente pelo aspecto em que me encontro, com a roupa suja, sem tomar banho, preciso de muito tato para abordar as pessoas e mesmo assim há muitas que não dão atenção”, relata. “Sabe quando você vai falar com alguém e a pessoa faz de conta que não há ninguém? Fico triste não por mim, mas pela pessoa. São pessoas pobres de conceito, de cultura, de educação”.

    Lembra do perigo da generalização pela qual passa diariamente. Dos olhares atentos dos vigilantes dos mercados para pessoas mal vestidas, da confiança depositada nos bem vestidos, mas não se dão conta de que “os maiores ladrões usam terno italiano, andam de carro importado e têm título de senador e de deputado”. Ressalta que por mais que não tenham roubado para si, muitas crianças padecem sem escola e sem creche porque os representantes do povo não cobram que o dinheiro seja aplicado da maneira correta.

    Cita o Artigo 159 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” para exemplificar o que falta à classe política brasileira.

    E Gelso Ferri tem medo de alguma coisa? Após um silêncio e olhar para o vazio, não sabe responder. Falante, começa uma digressão. Afirma ser tão perigoso morar em uma casa como na rua, pois se fosse seguro não se instalariam sistemas de vigilância e cercas elétricas.

    Hoje, fica feliz quando oferta suas paçoquinhas e as pessoas compram. “Isto me dá uma sensação de estar recuperando minha dignidade através do trabalho, quando eu vejo que posso comprar minha comida e ter a mínima condição de viver com dignidade eu fico feliz”, explica.

    É categórico: espera sair da rua em breve. Tem distribuído seu e-mail, ido com frequência à Agência do Trabalhador, mas lembra que a crise é grande e para poder contratá-lo as pessoas precisam progredir, ter condições de ter um empregado. Garante ter experiência como eletricista de automóveis, pizzaiolo, meio-oficial em construção civil, professor de violão, jornaleiro e vendedor de anúncio para jornal. Mas nos estudos, foi até o ensino médio. 

    Morador de rua, faz parte dos 3% da população brasileira que tem o jornal impresso como a principal fonte de informação de acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2016. “Depois que as pessoas leem o jornal, ele vira lixo, então eu pego e leio”, conta.

    O Brasil do povo não é o mesmo dos políticos

    “Eu amo o Brasil! O Brasil tinha tudo para ser o melhor país do mundo!” – fala gaguejando e com efusão – “temos um povo batalhador, esforçado, há uma minoria que estraga, mas ainda é um país lindo de um povo esforçado e trabalhador”. Critica a politicagem, a roubalheira generalizada de ocupantes do poder e de empresários. Demonstra tudo o que o senso comum não espera de um morador de rua: articula bem as palavras e traz citações do texto constitucional e de códigos de lei para amparar sua crítica ao sistema político brasileiro.

    “Apesar de ser morador de rua, sou totalmente contra o assistencialismo, precisamos é de mais geração de empregos, de mais creches para que as crianças fiquem enquanto os pais trabalham, de mais hospitais e escolas”, afirma. Diz que nas eleições de 2018 o país ficou em um beco sem saída, “vivemos um jogo político, não precisamos de um governante que invente alguma coisa, simplesmente precisa cumprir a Constituição”, emenda. Ferri afirma que a educação deve ser prioridade de qualquer governo que se estabeleça, melhorando a condição de trabalho dos professores, gerar oportunidade de estudo para as pessoas – frisa isto –, desenvolver ciência, tecnologia. “Fazer isto e cumprir as leis é o que ajuda o povo”, fala com um sorriso esperançoso nos lábios. Sobre o atual Presidente não gosta de comentar, diz que prefere falar de coisas boas.

    “Desde a construção de uma escola, quantos empregos já não são gerados? Da construção à manutenção e as pessoas que ali vão trabalhar é um bom avanço para gerar emprego agora”, analisa.

    Não votou no primeiro turno. Estava há dois dias sem se alimentar e conseguiu um serviço para fazer próximo à rodoviária no domingo pela manhã. Se desse tempo votaria no final da tarde, se não, não. Não deu tempo. “E mesmo se eu fosse votaria em branco, porque não concordo com duas coisas e vamos dar nome aos bois. Haddad representa o Partido dos Trabalhadores (PT), que já fez muita coisa boa pelo país mas ficou lá por 13 anos e permitiram muita confusão e muita roubalheira. Não acho saudável para a democracia do país um grupo ficar tanto tempo governando.”, critica. “Ele [Bolsonaro] não é uma pessoa preparada para governar o país, sequer tem uma equipe técnica com conhecimento para administrar o Brasil. Ele quer colocar empresários para dirigir estatais e acho que isso também não é saudável para o povo, porque o empresário defende o lucro” – leva algum tempo procurando a palavra certa para usar, leva o indicador e o polegar à testa e fecha os olhos – “o empresário não tem uma ideologia que o oriente a trabalhar pelo povo, para desenvolver a sociedade, mas para o lucro. E outra coisa, essas pessoas têm prática empresarial e não para administrar um país e eu acho que não vai dar certo.”

    Garante que os propagados discursos armamentistas estão errados. Conhece casos de pessoas que estavam armadas e perderam a vida ao reagir a um assalto. “O assaltante está sempre um passo à frente”, declara. Está seguro de que se o uso de armas de fogo fossem restritos às Forças Armadas e a alguns postos da polícia, os índices de homicídio do país seriam inegavelmente menores. 

    Lembra dos governos Lula, quando não tinha maioria no Congresso e teve que “comprar o apoio dos deputados e senadores para apoiar seus projetos que eram bons” – fala com veemência que eram bons – foi onde nasceu o mensalão. Colocar um presidente que trata o país como um balcão de negócios é como trocar bosta por merda, afirma em sua linguagem franca e aberta na única vez em que usou uma expressão considerada de baixo calão em toda a conversa.

    Fazendo uma cara feia e procurando um modo de se expressar de maneira clara, diz que não consegue concordar em quem vota em um político por ódio ou para desfavorecer outro. “É uma forma vingativa, mesquinha, pequena, medíocre de agir. É uma espécie de maldade e um tiro no próprio pé”, define. Aponta que as pessoas deveriam votar por identificação com propostas, não por saudosismo ou querer resolver as coisas na bala.

    Sobre Ponta Grossa, afirma que a parte boa do município é o povo. “O que sustenta esta cidade é o povo, porque os políticos não fazem nada e o que fazem é ínfimo perto daquilo que deveriam fazer”, critica com desdém.

    Amigo é uma palavra pesada

    “Amigo é uma palavra pesada”. Assim responde após uma pausa e voz embargada ao ser perguntado se tem algum. “Tenho alguns conhecidos, pessoas que gostam de mim e gosto deles, mas amigo mesmo, não tenho nenhum”.

    A conversa passa a ter um tom ainda mais reflexivo e profundo. A entonação de Ferri convida a repensar as relações sociais e a banalização de palavras nobres, como ele mesmo define. “Amigo é uma palavra tão nobre” – pausa, pensa no que dizer – “tem gente que diz ‘ah, eu tenho um amigo’, de forma tão comum mas, por exemplo, um amigo é mais do que um irmão” – faz outra pausa, desta vez emocionada – “mas muita gente confunde as coisas. Se o amigo está triste, você fica triste pelo motivo que o entristeceu, se ele está feliz, você fica feliz junto com ele. Quando há indiferença, não há amizade”. E complementa: “o amigo se compadece, ‘você está na rua? Então vem aqui que te ajudo da forma que eu puder’, entendeu?”. Sua situação ajudou a reconfigurar suas relações. Lembra do primo que se dizia amigo, mas bateu-lhe a porta na cara quando pediu para tomar um banho logo que foi para a rua, com frio e 15 pontos na cabeça.

    “Se o amigo não pode te ajudar, ele não te estorva, mas também não te despreza. Quem te despreza não é teu amigo”, reflete. Menciona que dizer que tem amigo na rua é um equívoco, há muito interesse envolvido. “Alguém chega e fala ‘ô velhinho, dá uma paçoquinha’ e eu dou, recebo um tapinha nas costas; se nego porque dependo disso para viver, sou xingado.”

    Dois homicídios e 27 anos de cadeia

    Calçando botas que percorrem a cidade toda em busca de emprego, uma calça preta velha e surrada, uma camisa vermelha e uma jaqueta fina que mal protege do frio – a mesma roupa em todos nossos encontros, pois é a única que possui – conta sua história cheia de marcas das quais se arrepende profundamente, mas que prefere tomar como aprendizados.   

    Quando morrer, qual legado deixará? Para esta questão, Ferri cita um ditado popular. Uma pessoa, para não passar em branco na vida, tem que fazer três coisas: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Lembra que já fez os dois primeiros e agora resta escrever o livro. Os assuntos que cogita (criminalidade, sistema penitenciário, manicômio judiciário) carregam um forte significado pessoal: passou 27 anos preso por dois homicídios que cometeu.

    “Cometi três crimes muito graves contra Deus e contra a sociedade, matei duas pessoas e assaltei uma família”, confessa. Questiono por quê tirou a vida daquelas pessoas. “Eu andava armado, o cara veio me assaltar, vi que ele não tinha arma e estava apenas com o dedo embaixo da camisa, enfiei o 38 na boca dele e o matei” – relata olhando para o chão, com a voz baixa. “Não falo isto com orgulho, foi um erro que cometi, ele não colocava minha vida em risco”. O segundo assassinato foi do tempo em que assaltou uma família e o sujeito sabia o que Ferri fez. Por medo de ser entregue à polícia, matou, mas foi descoberto mesmo assim. “Não adiantou nada, além da polícia descobrir o que eu queria esconder, descobriu também que eu o havia matado”, conta.

    Faz oito anos que Ferri terminou de cumprir sua pena e garante que nunca mais se envolveu com qualquer atividade ilícita.

Comentários: 2

  1. Christian disse:

    Muito boa a entrevista!!!
    Nos faz refletir sobre a sociedade atual.

  2. Reginaldo disse:

    Parabéns pela entrevista! Um belo e surpreendente trabalho.

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