Por Bruna Fernandes, Gabriela Gambassi e Nilson de Paula
1945: O imperador japonês assina um termo de rendição para o presidente dos Estados Unidos. Esse é o último de uma cadeia de fatos que dá fim à guerra que ficaria conhecida como Segunda Guerra Mundial. O mundo comemora o reinício da paz. Os pracinhas brasileiros, que lutaram em solo do Eixo, não ficam de fora. O soldado Odorico Dias de Góes espera ansiosamente o momento de voltar para casa e para a esposa, com quem casou um mês antes de partir para a batalha. Porém, esse caminho não seria tão fácil quanto o esperado
2015: O mundo comemora o septuagésimo aniversário do fim dessa Guerra. Em Ponta Grossa, no Paraná, o major reformado Odorico Dias de Góes, com 95 anos, relembra os eventos que viveu na Itália durante aqueles anos de guerra. E o aniversário do seu casamento, com Anna Roza, também faz 70 anos.
Recebendo os repórteres trajados com o seu uniforme do exército e incapaz de conter o orgulho na voz (um tanto vacilante em razão de um AVC sofrido recentemente), Odorico brada que já deu ‘até palestras’ sobre os acontecidos durante a Guerra. Antes mesmo de começar a entrevista, se apressa para mostrar suas medalhas e condecorações recebidas por seus atos em campo de batalha, que ele lamenta não estarem pendurados na parede, já que a casa está em reformas.
– Não me sinto um herói nacional.
E ele “não é” porque acredita não ter feito mais que a sua obrigação.
A entrada tardia do Brasil na Guerra, em 1942, foi motivada pelo ataque alemão aos submarinos da Marinha Brasileira. Esse fato histórico, questionado por historiadores que acreditam ter sido uma armação dos Estados Unidos para forçar Getúlio Vargas a escolher um lado, é tido como consumado pelo major. O primeiro grupo ponta-grossense do 13º Batalhão de Infantaria Blindada (13 BIB) a ser convocado partiu no começo de 1944 para a Itália. O grupo de seu Odorico partiu mais tarde naquele mesmo ano.
As cinzas da Grande Guerra e as frutas da estação
Nascido em 1920 no distrito de Guaragi, seu Odorico viveu sua infância com poucos bens materiais. Filho de Odorico de Góe e Maria Dias.
– Eu não cheguei a conhecer meu pai. Ele faleceu em outubro de 1920, e nasci em 5 de novembro. A única herança de meu pai foi o nome Odorico de Góes.
Quando tinha 13 anos, a sua família mudou-se para Ponta Grossa, para procurar lugares melhores para viver. Naquela época, a cidade esperava ansiosamente o seu centenário, dali três anos, e passava por um crescimento econômico expressivo. Uma nova leva de imigrantes chegava, fugida da Grande Guerra (mais tarde viria a se chamar Primeira Guerra Mundial), terminada na Europa há dois anos.
Embora o mundo comemorasse o fim da Primeira Guerra, a situação no continente europeu não era pacífica; a humilhação sentida pelos alemães quando foram forçados a assinar o Tratado de Versalhes deixa a Europa tensa. Para Odorico, entretanto, isso não tinha importância.
O menino estava mais preocupado em vender as frutas da estação para os passageiros e os maquinistas dos trens que paravam no rio Guaraúna se abastecer de água. O sucesso das vendas dependia do bom humor do maquinista, que parava em outro rio se não quisesse ajudar Odorico e os irmãos, hoje todos falecidos.
– Fiquei só eu pra semente.
Esse talento para o comércio se revelou útil na Itália, muitos anos mais tarde. O país vivia uma economia de guerra; coisas supérfluas tinham um preço alto, ainda mais para a população desgastada por quatro anos de batalha. O exército brasileiro, recém-chegado e ainda financeiramente estável, tinha suprimentos que eram preciosos para os italianos. Um deles era o sabão. Cada soldado tinha direito a uma barra de sabão. Odorico viu aí sua oportunidade. Com uma gargalhada, diz:
– Banquei o esperto.
Ao se oferecer para levar as trouxas dos demais soldados para as lavadeiras italianas responsáveis pelo serviço, Odorico lhe entregava apenas uma barra de sabão. As demais, escondia no casaco onde ele próprio costurava bolsos, e revendia a outras pessoas.
E essa não foi a única situação pitoresca da Guerra por ele relembrada. Mais uma vez com sorriso nos lábios, o seu Odorico revela mais um de seus causos, desta vez, sobre seus momentos de distração durante o cessar-fogo. Quando estava no acampamento com seus colegas, costumava tocar a única música que ele sabia em sua gaita de fole de oito baixos, mas estranhava que ao longo do tempo, o fole não fechava mais. Então, cansados de ouvirem sempre o mesmo ritmo, os outros militares juntaram dinheiro para comprar o silêncio e a gaita do soldado Odorico para que tivessem um descanso da música.
– Me pagaram muito bem pela gaitinha, até deu para ficar um pouco feliz!
Seu Odorico conta então que os militares penduraram a gaita de fole no galho de uma árvore, e fizeram uma fogueira logo abaixo, para queimá-la.
– Daí saiu tudo quanto é bicho de dentro da gaita! Era barata, ratinho, aranha…. Me apavorei! – Caindo no riso mais uma vez.
Na guerra e no amor
Enquanto conta e relembra as histórias de tantos anos atrás, seu Odorico não tira o sorriso do rosto, as medalhas tilintando em seu peito constantemente durante a conversa. É uma pessoa expansiva, divertida e falante, diferente de sua esposa Anna Roza, uma mulher fechada e de poucas palavras. Apesar disso (ou, talvez, por isso), eles estão juntos há 71 anos. Hoje com cinco filhos, onze netos e treze bisnetos, o major alega:
– Nunca brigamos!
Os dois casaram em 30 de setembro de 1944. Um mês depois disso, Odorico, então com 24 anos, foi convocado para fazer parte da Força Expedicionária Brasileira e combater os alemães em solo italiano. O rapaz, logicamente, preocupou-se com a esposa. Ela, porém, surpreendeu-o.
– Ih! Ela deu foi graças de eu ser convocado. Nem sei por que ela casou comigo, sou muito feio!
Mesmo tendo dado graças por sua convocação, a ‘sua senhora’ foi quem pediu para a banda do Exército receber os pracinhas quando de sua chegada na Estação Saudade depois da Guerra. A cidade inteira, de acordo com ele, apareceu para recebê-los; Odorico nem conseguiu sair do trem inicialmente, tendo que esperar a multidão se dispersar um pouco.
Depois disso, a banda seguiu-o até a sua casa, não muito longe da Estação; o problema é que a casa era pequena, e dona Anna Roza não tinha preparado comida suficiente para todo mundo. A solução foi a banda ficar tocando do lado de fora da casa.
A chegada em Ponta Grossa, porém, foi só uma das etapas vividas por Odorico entre o fim do conflito e a volta a vida normal. O primeiro deles foi um passeio pela Europa com os demais pracinhas; começando pela Itália, onde conheceram o Papa Pio XII e dele receberam uma benção escrita (que seu Odorico lamenta não poder mostrar, já que foi comida pelas traças), os soldados foram até Portugal, onde ‘viveram de graça’, já que os portugueses insistiam em lhes oferecer tudo gratuitamente.
Seu Odorico ainda serviu no Exército por mais 26 anos, em várias bases militares do país.
E depois?
A vida em Ponta Grossa é acompanhado de um passatempo predileto: a pescaria. Como todo pescador, porém, suas histórias tem que ser observadas com um tanto de cuidado. Todo faceiro, conta a história de quando foi atacado por uma onça e matou o bicho no braço. Depois, acrescenta rapidamente, com uma piscadela e uma gargalhada:
– Vocês sabem que não conto mentira, né… Além da onça, seu Odorico também conta (essa história, sim, mais credível) que, certa vez, sentiu sua isca puxando com força e começou a lutar contra o ‘peixe’, para depois descobrir que a linha ficou presa na boca de um gato-do-mato.
Hoje em dia, seu Odorico passa a maior parte dos seus dias em casa, cuidando dos seus adorados passarinhos, enquanto a esposa e a filha cuidam da casa. O lar ainda traz lembranças da experiência mais marcante da sua vida: os enfeites de mesa são pequenos canhões e uma cigarreira com o símbolo da FEB.
Esse ano, o major veterano foi dono de uma grande honra, que conta com seu característico sorriso: hasteou o Pavilhão Nacional antes do início do desfile em comemoração a Independência do Brasil. Um presente mais do que merecido por seus feitos há setenta anos.
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