A história do crime real envolvendo Suzane Von Richthofen e os irmãos Cravinhos se transformou em cinema em setembro, depois de quase dois anos da espera para o lançamento, com a direção de Maurício Eça, que surpreendeu ao saltar do âmbito infanto-juvenil para uma produção de crime real, e o roteiro dos já conhecidos Ilana Casoy e Raphael Montes. A grande surpresa, além do lançamento exclusivo para o serviço de streaming Amazon Prime, foi o formato: o enredo é contado em dois filmes diferentes.
Baseados inteiramente nos depoimentos de Suzane Von Richthofen e Daniel Cravinhos, os filmes apresentam ambos tentando justificar suas ações por meio de narrativas acusatórias. Na versão de Suzane, ela é uma jovem menina manipulada pelo namorado para gastar o dinheiro dos pais e, eventualmente, ajudar a arquitetar o assassinato deles. Já na versão contada por Daniel, ele foi convencido pela namorada a matar os pais dela para que pudessem viver uma vida juntos.
No papel, a divisão em dois filmes de menos de duas horas de duração funciona bem, já que divide completamente os dois relatos e faz com que as diferenças sejam facilmente reconhecidas. Na prática, são quase três horas assistindo obras similares até demais. Por mais que seja uma experiência interessante passar todo esse tempo tentando captar as pequenas diferenças nos figurinos, atitudes e falas dos personagens, algumas cenas parecem ser completamente idênticas. O destaque fica, é claro, com o ápice dos dois filmes: o assassinato de Manfred e Marísia, pais de Suzane. Com uma boa atuação de Carla Diaz e Leonardo Bittencourt, o público se vê cercado por versões que não acabam mais em um mesmo crime.
Pontuações importantes para o acontecimento são deixadas de lado, ou retratadas com poucos a nenhum detalhe. Um dos fatores mais discutidos sobre o caso é a questão socioeconômica envolvida entre as famílias, mas vemos apenas de forma ilustrativa, quase que simplória, o quanto isto influenciou nas ações dos envolvidos no assassinato. Não existe uma dinâmica que problematize as diferenças entre os Von Richthofen e Cravinhos além das informações que o público já tem na palma de suas mãos. Como o acesso para detalhes pessoais dos envolvidos está cada vez mais normalizado, o roteiro deveria se preocupar mais em trazer uma experiência além do entendimento de lado A e B, mas também do cenário em que o acontecimento estava inserido.
A direção de Eça tem seus pontos altos, com cenas que deixam o espectador em transe pela baixa iluminação e alteração sublime da paleta de cores, que fica progressivamente mais escura até chegar no seu ápice, a cena do assassinato dos pais. Diaz é brilhante nas sequências de confusão, passando a sensação de que a própria Suzane se arrependia dos seus atos assim que pecava. Entretanto, a sonoplastia deixou a desejar. Em uma tentativa de construção da expectativa das emoções que o filme entregaria, versões alternativas de músicas do Radiohead e Joy Division, como “Love Will Tear Us Apart” (O amor vai nos dilacerar, da tradução livre) seriam acréscimos significativos ao filme, mas deixou o formato da finalização da história mecanizado, como se fosse um filme ficcional.
O Menino que Matou Meus Pais e A Menina que Matou os Pais abre o caminho para o gênero cinematográfico de crimes reais, juntando o mercado brasileiro ao internacional, que já percebeu o quanto essas histórias vendem há muito tempo. Ao acompanhar essa tendência, podemos imaginar um futuro promissor para o gênero, que pode ter seus pontos negativos e positivos dependendo da qualidade do trabalho. Quando feito corretamente, cinema de crimes reais reforça a memória coletiva nacional diante de situações graves e marcantes, mas, caso exista o menor erro, um filme pode acabar se assemelhando ao jornalismo sensacionalista ao fazer com que vítimas e criminosos virem personagens e não retratos da realidade.
A reação do público é um reflexo deste cuidado com a narrativa. O caso é conhecido popularmente por todo o Brasil, e já havia a divisão de “lados” da história antes mesmo do lançamento do filme. Com a adição de cenas representando o julgamento dos culpados, é possível ver a situação de acusações e disparidades sendo claramente arquitetada para que não apenas o juiz e o júri ali presentes decidam quem está mais certo ou errado, mas também o público de fora que acompanha o caso até hoje. Mesmo com a pobreza na transparência dos depoimentos no longa, inseri-los no início e fim do filme é uma escolha inteligente, pois induz o espectador a assistir o produto na íntegra para conhecer as duas versões.
De maneira geral, são filmes que alcançam o propósito inicial de contar uma história já tão explorada pela mídia há longos anos. É possível argumentar que outro formato poderia ter sido escolhido para que o roteiro fluísse de maneira mais leve, como um documentário ou um podcast, como na produção de O Caso Evandro, com detalhes da história em episódios complementares, seguindo uma linha de raciocínio para a compreensão dos fatos a partir das testemunhas e acusados, aspectos que o filme de Eça não se propõe a apresentar.
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