O trem trouxe progresso, novos personagens e vidas que fizeram histórias em Ponta Grossa. Desde o final do século XIX, a Estação da Rede Ferroviária Federal se tornou um ponto de referência no município. O local por onde chegavam e saíam centenas e milhares de pessoas, todos os dias, a cada semana, mês e ano.
A saudade da Estação, desativada a partir do início da década de 1990 e, pior, quase destruída após a privatização da Rede, levada a cabo pelo Governo FHC (entre 1996 e 98), deixou um vazio na região central de Ponta Grossa que, até então, girava muito em torno dos serviços, demandas e espaços também criados a partir da ferrovia, como o Hospital 26 de Outubro, o comércio no entorno da Estação, com bares, hotéis, restaurantes, terminal urbano, dentre outros estabelecimentos. Até aqui é uma história, já conhecida, que está sendo literalmente destruída pelo esquecimento ou pela vergonha de governos que preferem entregar o patrimônio público para o controle de uma iniciativa privatizada (e fundamentalmente mercantilista).
É exatamente algumas destas memórias vividas que a peça de teatro Estação Saudade: o reencontro, que está em cartaz com uma série de apresentações na Cidade, traz ao (re)conhecimento dos moradores de Ponta Grossa que, de alguma forma, tiveram suas vidas cruzadas pela história da ferrrovia. Com duração de 60 minutos, a peça tem classificação livre, escrita e dirigida por Helcio Kovaleski para o projeto de popularização do teatro na cidade, com o apoio da Secretaria Municipal de Turismo e Cultura de PG.
A história é simples, mas recheada de lembranças e marcas da vida cotidiana de qualquer cidade que foi influenciada pela presença da rede ferroviária. No palco, quatro personagens se encontram, sob orientação de uma suposta ordem de esperar a chegada do Sr A. Enquanto isso, a ordem é não lembrar e tampouco falar de suas memórias. Aos poucos, contudo, cada um dos personagens traz suas lembranças e experiências (saudosas) da presença do trem, da estação, inspiradas pelo sonoro apito e sino que anuncia a chegada/partida de locomotivas – imaginárias, obviamente.
Para quem assiste à peça pela primeira vez é inevitável o questionamento sobre o significado do Sr A. Seria, acaso, o Autor da peça? Ou o silêncio, que faz uma história de descaso com o patrimônio público, na mesma medida em que se perpetua e os personagens não ousam contar suas memórias? Seria, talvez, o monstro da privatização que destruiu nos mal fadados tempos da onda neoliberal (1990-2002), além da ferrovia, boa parte de um rico patrimônio cultural e econômico do País, sob a falsa promessa de deixar o estado mais leve e mais eficiente? O preço desta privatização, hoje, todos sabem o quanto pesa no bolso do brasileiro e, pois, dispensa comentários!
De volta ao palco… da Estação Saudade! No embalo do teatro, o recado de um menino – para não esperar mais pelo Sr A – traz alguns questionamentos aos personagens, sobre as memórias e espaços que fizeram suas vidas. E seguem as experiências, contadas e bem lembradas ao som do apito de uma maria, a fumaça.
Uma quebra no (entre) ato da peça traz ao palco um diálogo entre dois personagens (o “desgranhento” e o guaramputa”) que usam (e abusam) de expressões regionais, mas que podem ser encontradas ao longo do caminho das tropas, até o estado mais ao sul do País. Coisas para “ferver o k-suco”, troca de gentilizas (de um “seu paia”, “fia da pulícia”, “jacu rabudo”, “visage” ao “caipora”) entre um “animar de teta” e o parceiro, quase “virado do guéde”, que vão “andandinho”, mesmo que só na “capa da gaita”. Ambos se encontram para um “tar de teatro”, onde se “conta causo”, enquanto ficam se “inliando” na espera de um “fila-bóia”, que pode ter “cuque” e até um “copo de leite quente”.
No retorno ao ambiente das saudades da Estação, as personagens são informadas, por um telefone antigo (bem guardado no baú), pelo próprio autor da peça de que podem fazer suas próprias trajetórias contadas em lembranças, sempre cruzadas nos acasos da Estação. Cada um com sua mala, de objetos e memórias, que fizeram suas histórias, individuais, mas coletivizadas pela (oni) presença da ferrovia d’outrora. Referências aos espaços, prédios e estabelecimentos de serviços que existiram na cidade. Alguns que ainda insistem em não cair, apesar do descuido ou de ‘fogos fantasmas’, que surgem mesmo em tempos de umidade fria, para deixar espaço a outros prédios de concreto armado, com menos histórias e mais artificiais.
“O reencontro” na (imaginária) Estação Saudade é uma peça que pode – ou deveria ser prestigiada – por todos os moradores da Cidade, mas talvez com mais atenção por aqueles que estão aí, esperando cargos na administração pública, para melhorar suas vidas particulares, à sombra de outros senhores, talvez os mesmos que silenciaram quando a Rede Ferroviária foi desmontada na década de 1990. Aliás, mesma época em que, no Paraná, os usuários passaram a pagar uma das tarifas mais caras de pedágio rodoviário do País. Espécie de vergonha em dose dupla (desmonta um serviço e encarece o que resta)!
Resta, pois, aqui, a lembrança e Saudades de uma Estação, que marcou época e a vida de milhares de pessoas que nasceram, chegaram/partiram ou se encontraram a partir dos trilhos do trem. Por isso mesmo, a peça não tem um caráter local ou regional, mas sim universal, pois atualiza e presentifica histórias muito similares que se construíram em qualquer cidade (média, grande ou pequena) que se ergueu a partir das estradas e estações de trem. Vale prestigiar o que é feito, aqui, mas tem força cultural suficiente para ser compreendida em qualquer lugar do mundo, na espera da chegada ou partida de uma locomotiva ferroviária.
Sérgio Luiz Gadini, professor, jornalista, membro do Conselho Municipal de Cultura de PG.
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