Muito mais do que uma simples dona de casa

Cabelos loiros, meio esbranquiçados e cacheados. Olhos entre azuis e verdes. Boca perfeitamente desenhada no rosto. Mais ou menos um 1,68m de altura, já que, por complicações na coluna, havia diminuído. Bonita, 62 anos. Essas definições foram dadas pela própria personagem deste perfil. Elisete Zeni Rebelato estava sentada em sua poltrona que reclina para trás e costurava uma blusa de tricô de cor rosa escuro ainda sem saber quem a receberá. Pode parecer um mero detalhe em meio à conversa, mas nem os momentos emocionantes atrapalharam e impediram as mãos habilidosas de trabalhar. A sala de televisão, como chamam, foi o cenário para a entrevista. Estávamos a sós, somente com o barulho de um cachorro latindo na casa ao lado.

Elisete se casou aos 17 anos e foi morar em Francisco Beltrão, no Paraná, com seu marido que era militar. Na época, nem todas as mulheres trabalhavam fora, mas ela sempre deu um jeito de não ficar parada. Tudo que fez para ganhar dinheiro foi dentro de casa. Em Ponta Grossa, fazia velas decorativas que foram para Estados Unidos, Europa e Canadá. Roupas que buscava em São Paulo e vendia na sala de estar. Pães sob encomenda para os vizinhos. Mas, o que lhe agradava de verdade era fazer bem aos outros sem nenhuma recompensa, como por exemplo com comidas saborosas aos filhos e netos. Sempre foi uma opção sua ter esse estilo de vida, já que, como o marido trabalhava fora, teve a possibilidade de ser uma dona de casa, ou seja, trabalhou diariamente dentro do seu lar. Fundadora da Pastoral Carcerária de Ponta Grossa, contou com muito orgulho todo o processo para conseguir humanizar aqueles presos perante a sociedade e tentar levar conhecimento àqueles que não tinham mais esperança. O irmão de uma amiga próxima foi preso e a família ficou muito abalada. Foi aí que Elisete decidiu ir até a cadeia. “Ninguém acreditava, mas eu queria entrar na cadeia, criar uma pastoral carcerária e conversar com os presos”, relatou com a voz firme e empoderada.

A leitura é um dos pontos que me chamou atenção durante a conversa por ser algo de extrema importância para aquela mulher. Por ser formada em Pedagogia, enfatizou diversas vezes o significado que os livros têm para ela. Além de tudo que fazia, abrir uma biblioteca dentro da cadeira era um objetivo a ser alcançado. A princípio, parecia loucura. Mas ela conseguiu. Os livros de poesia eram os que os presos mais escolhiam – o que a impressionou muito. Foi conversando com juízes, delegados e promotores que ela conseguiu representar a igreja católica dentro do presídio Hildebrando de Souza. Decidiu sair da pastoral quando percebeu que estava cada vez mais envolvida na prisão, ficando longe de casa, perdendo seus momentos com a família e gastando o pouco dinheiro que tinham com esses assuntos. No relato, demonstrou ressentimento por abandonar aquilo que ela mesma construiu. Sua casa sempre esteve cheia de pessoas, sejam elas família, amigos ou até desconhecidos. Por ser uma mulher de muita fé, que é uma mistura de católica com espírita, fez do seu sofá de casa um local especial para centenas de sujeitos. Fazendo orações, benzendo e, às vezes, só ouvindo, se tornou uma figura representativa na Vila Estrela. Desde que construiu sua casa na Rua Padre Nóbrega, o número 856 era sinal de esperança para os vizinhos que confiavam (e confiam até hoje) na “Dona Elisete”. Sempre aconselhou, “tipo uma psicóloga que não cobra”, como ela mesma diz. A frequência das visitas diminuiu ao longo dos anos quando começou a ter problemas na coluna. Foram diversas cirurgias para melhorar as dores insuportáveis das hérnias de disco. Em 2017, depois de uma delas, uma lesão no pé direito a fez descobrir que estava com trombose. Lá ia Elisete para mais uma cirurgia. Desta vez, colocou uma prótese de uma das ramificações da veia aorta que manda sangue para as pernas. E os problemas de saúde continuaram. Com a voz triste e ao mesmo tempo forte, Elisete deu sequência às histórias que a levaram até esta entrevista. Ela demonstrou não gostar de ficar lamentando esses fatos. Usa deles para dar continuidade à história da sua vida.

Foto: Ane Rebelato | Elisete Zeni Rebelato, 62 anos.

O ápice das emoções na conversa foi quando contou sobre sua família. São três filhos e uma filha. Quatro netas e dois netos. Um irmão e duas irmãs. Cinco sobrinhas e um sobrinho. A contagem segue e os nomes dos parentes são contados com muita felicidade. No seu olhar era possível perceber muito amor e afeto por aquelas pessoas. Diversas vezes, quando questionada sobre seus sonhos e histórias marcantes até aqui, a família foi citada. E esse sentimento não é à toa. “Nunca fazer inimizade com meus irmãos, ter um monte de filhos e que todos se amassem. Esse era meu ideal de vida desde criança e não mudou. Tirando as outras coisas que eu sonhei, isso foi o que eu mais queria e eu realizei completamente”. A neta mais velha veio quando ela tinha apenas 42 anos. Sim, tinha idade para ser mãe ainda e foi vó. Apesar do susto, já que seu filho tinha 20 anos, nunca deixou eles passarem por nenhuma dificuldade. As lágrimas encheram seus olhos neste momento. O assunto é um dos que mais a orgulha em sua vida. De todos seus netos e netas, esta mais parece uma filha, já que foi Elisete quem ajudou a criá-la. Uma palavra que resume a sua experiência de viver é amor. “É maravilhoso poder viver. Eu tive os pais que todos queriam ter, nunca me faltou nada mas também nunca sobrou. Aprendi tudo em casa para poder me virar. Casei com o melhor homem do mundo e tenho certeza disso. Meus filhos, todos com sua personalidade. Foi fácil pra mim viver.”. Ela relata que teve momentos extremos de dificuldade, tanto financeiras quanto de saúde, mas que tudo que enfrentou ajudou em seu crescimento. “Parece mentira, mas de tudo que eu vivi não mudaria nada, foi tudo muito bom e está sendo. Tudo bom e ruim passa, e fica tudo bem no final”. Foi assim que encerramos a conversa, seguida de um grande abraço e um sorriso no rosto de orgulho pela sua história.

O mais impressionante é que a maioria dessas histórias de vida eu já conhecia, mas nunca me apeguei aos detalhes. É uma experiência de vida que, assim como outras, merece ser contada. Apesar da personagem escolhida ser minha avó, quando fui fazer este perfil, esperava apenas contar o que já sabia. Mas estava enganada. Elisete é muito mais do que uma dona da casa, pela sua experiência e modo de ver a vida.

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