O diálogo de Habermas com a religião

Por Guilherme Telles Bauer  

Em junho do ano passado o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas completou 90 anos sendo mundialmente homenageado como um dos mais importantes pensadores da atualidade. É reconhecido não só pela sua incansável luta teórico-política em prol da liberdade comunicativa, justiça e igualdade, mas igualmente pelo seu permanente posicionamento contra as mudanças climáticas, comunicação destrutiva através da internet, as questões pós-democráticas e a desenfreada dominação do capital financeiro mundial.  Sua extensa, sempre crítica e provocativa obra, já traduzida em mais de 40 línguas, suscita em toda parte debates, questionamentos e reflexões. A nível internacional há uma legião de textos tratando dos seus escritos e do impacto de suas ideias na vida pública, a exemplo de recente obra coletiva publicada na Alemanha (“Habermas Global”) contendo contribuições de 30 renomados autores provenientes de 15 países, buscando fornecer uma ampla visão dos efeitos de sua obra a nível mundial.  A respeitadíssima Cambridge University Press acaba de editar “The Cambridge Habermas Lexicon”, um dicionário com mais de 800 páginas focando conceitos e palavras-chave da sua produção intelectual. Ressalte-se, após Rawls e Foucault, Habermas é o terceiro autor a ser agraciado com um léxico pela Universidade de Cambridge. 

O próprio Habermas, incansável, não para de escrever. Em setembro passado foi editada sua última obra (“Também uma História da Filosofia”), um monumental, denso e complexo texto subdividido em dois volumes. Além de centrar-se em uma reconstituição da história da filosofia, discute, sobretudo, uma temática que vem preocupando-o desde pelo menos o ataque da organização islâmica Al-Qaeda contra as Torres Gêmeas e Pentágono, levando-o nos últimos anos a repensar o papel da religião nas “sociedades pós-seculares”. Ao mesmo tempo em que discute a oposição entre fé e razão, crença e conhecimento, questões basilares do novo texto, procura delinear o papel e a contribuição que a religião poderá exercer na preservação e aprofundamento da democracia em crise. Uma democracia, em especial a dos países europeus, deparando-se com o desafio do enorme crescimento do Islamismo, afetando a vivência social e política dos seus concidadãos. Em intervenção pública ocorrida em 2012, Habermas cita  episódios que se fizeram presentes em uma única semana do ano de 2007, evidenciando, no seu entender, a crescente relevância do fator religioso no seio de diversos países: enquanto o bispo de Canterbury, tendo em vista a presença cada vez maior da população muçulmana no país, recomenda aos legisladores britânicos a levarem em conta partes do Direito sobre a família contidos na Sharia, Sarkosy, o primeiro ministro francês, determinava o envio de 4.000 policiais para conter distúrbios provocados por jovens argelinos num Arrondissement parisiense composto majoritariamente por uma população árabe-muçulmana. Enquanto isso, nesses mesmos dias, em Ludwigshafen, na Alemanha, ocorria um criminoso incêndio de um prédio destinado a emigrados estrangeiros, matando 9 turcos, dentre eles 4 crianças, expressando o crescente racismo no país. Para Habermas, esses incidentes concentrados em uma única semana documentam o quanto a democracia encontra-se frente a novos desafios e riscos, perguntando-se quais as medidas a serem tomadas para enfrenta-los.

Trata-se de um intelectual que não se refugia no nimbo de sua torre de marfim, muito menos imerso em um universo fechado de concepções pretendidas como verdades prontas e acabadas, Habermas, ao mostrar-se permanentemente preocupado em analisar e debater criticamente práticas e sintomas do que pode representar ameaças à vivência democrático-republicana, não se nega em repensar seus posicionamentos. Se anteriormente, em textos como  na “Teoria da ação comunicativa”, Habermas ainda entendia que a humanidade fora beneficiada pela secularização, a autoridade do sagrado em declínio sendo gradualmente substituída pela autoridade de um novo consenso alcançado resultando no surgimento de uma moralidade secular, permitindo aos homens o pensar por si mesmos e a desenvolverem seus próprios conceitos do que é bom e justo, essa aspiração, no entanto,  mostrou-se frustrada pelo próprio desenvolvimento das sociedades globalizadas. A seu ver, as sociedades inseridas no capitalismo tardio “descarrilharam”, passaram a apresentar crescentes “sinais de degradação e de deficiências morais”, falhando em alcançar “o primado da razão como se esperava”. Os processos de racionalização não se mostraram assim “tão racionais e solidários como se acreditava originalmente”. Para ele o Estado liberal, ancorado numa racionalidade procedural, não soube ou conseguiu inspirar seus cidadãos a praticarem “atos virtuosos”, não alcançou obter ou manter um “controle da imagem de uma totalidade moral”, mostrando-se incapaz de “formular ideais coletivamente agregadores”. A autonomia individualista alcançada na modernidade não se mostrou à altura das necessidades humanas em fornecer um sentido maior às suas vidas. Não se soube levar avante um aperfeiçoamento da vivência democrática, fracassando no sentido de congregar as pessoas, de uni-las numa comunidade na qual a justiça, a tolerância e a solidariedade prevaleceriam.  Ao contrário, a solidariedade e a tolerância em toda parte passaram a ser violadas e direitos humanos continuamente estão sendo desrespeitados.

A insuficiência demonstrada pela razão secular e a própria fraqueza da democracia levaram Habermas a repensar suas concepções anteriores, a procurar recursos em esferas do espaço público que viessem a suprir as deficiências apresentadas nas sociedades contemporâneas. Desde o Onze de Setembro e frente ao vácuo e perplexidade existentes no mundo globalizado, ele começa a reconsiderar sua percepção sobre o papel e o sentido da religião na vivência humana. Em que pese o avanço da secularização, no interior das sociedades laicas e democráticas, religião e instituições religiosas continuaram existindo, não deixaram de influir no modo de pensar e de viver de expressivas parcelas das populações locais. Habermas se dá conta de que comunidades unidas por suas crenças, por suas percepções de vida e de valores, podem e exercem influência no espaço público, na vivência social e política da sociedade como um todo. Na sua visão, é no âmbito do “mundo da vida” das sociedades democráticas onde se pode formar algo que se aproxima da opinião geral dos cidadãos – laicos e também religiosos – levando-os a se comportarem como um corpo público, tendo a chance de debaterem de modo irrestrito questões que são de interesse geral, dispondo da garantia de se reunir e se associar com a liberdade de se expressar ou publicar sua opinião. Para Habermas tornou-se não só importante, mas necessário se buscar formas de diálogo com as entidades religiosas, descartando-se, porém, uma aproximação com renascidas religiões irracionais e fundamentalistas. Pois não haveria sentido, não haveria como o Estado de direito estabelecer um diálogo com elas, aceitar qualquer tipo de radicalismo, acatar “imposições de crenças da revelação divina” transpondo-as para a vida pública e política. Representaria não só o fim da tolerância ou mesmo de respeito por outras visões de mundo, mas o próprio Estado estaria se auto abdicando.

 No entanto, no entender de Habermas é factível de se estabelecer formas de entendimento, de se criar novas alianças entre a razão secular e as instituições religiosas, desde que conteúdos básicos de experiência e sensibilidade religiosa se encontrem desenlaçados do conteúdo impositivo de crença, desde que integrantes de comunidades religiosas, ao participarem do debate público, tenham suas opiniões “traduzidas da linguagem esotérica para o idioma geral do cidadão” através de um discurso que seja independente da autoridade religiosa.  Para ele, o Estado liberal pode e deve permitir aos seus cidadãos, sejam eles crentes ou não religiosos, que convivam e discutam seus respectivos pontos de vista acerca de temas problemáticos que se fazem hoje presentes na vivência dos homens. A partir dessa compreensão, respeito e aceitação mútua, a contribuição dessas entidades para o debate em assuntos vitais como direitos civis, aborto, eutanásia, bioética, paz e violência, tornam-se imprescindíveis. É como se a religião viesse a desempenhar um papel que o Estado não soube preencher, suprindo uma carência que se mostra presente no mundo contemporâneo. A seu ver, as tradições religiosas teriam um poder especial de articulação para intuições morais, especialmente no que diz respeito às formas mais sensíveis da coexistência humana, contrapondo-se à identificação crédula no primado da ciência como razão absoluta, muitas vezes pretensões racionais que se convertem em irracionalismos.

Em sua incessante busca por caminhos que possam contribuir para salvaguardar de algum modo as conquistas e os direitos democráticos alcançados no processo da secularização, agora cada vez mais drasticamente ameaçados de desmonte pelo avançar da intolerância, racismo e fanatismo difundidos mundo afora pelo populismo nacionalista a la Trump (imagine-se se soubesse de tipos como Bolsonaro e consortes!), Habermas encontra na religião um possível aliado para a busca de algum consenso para enfrenta-los. É o que explica seu surpreendente encontro com o cardeal Ratzinger, o futuro Papa Bento 16 ocorrido em 2004 para discutirem “as bases pré-políticas e morais do Estado Democrático” (o debate entre o agnóstico filósofo “iluminista”, profundo conhecedor e influenciado pelo marxismo, e o cardeal do dogmatismo católico, com seus respectivos posicionamentos e possíveis aproximações encontra-se no opúsculo “Dialética da Secularização. Sobre Razão e Religião”). Habermas se apercebe que a própria Igreja se mostra mais aberta para o diálogo e a convivência, citando o exemplo nada convencional de quebra de barreiras propiciada pela cerimônia fúnebre de Max Frisch, o grande escritor suíço, um autodeclarado agnóstico, que sem qualquer vínculo religioso determinou antes do seu falecimento como o local apropriado para suas exéquias a Igreja colegiada de São Pedro em Zurique. No início da cerimônia, a companheira de vida de Frisch lê sua curta nota de despedida, agradecendo aos padres por permitirem a vigília e a permanência do seu sarcófago no recinto religioso, acrescentando “deixo a palavra aos próximos e sem amém … as cinzas serão espalhadas em algum lugar”. Habermas anota que além dos intelectuais presentes, não havia “nenhum padre e nenhuma benção”. Interpreta o gesto da escolha do local e a própria cerimônia, por um lado, como se a “era moderna aparentemente esclarecida” não alcançasse “em sua opacidade” oferecer um “espaço adequado e equivalente para o rito final da passagem da história de vida”, tal como oferecido pela religião. Por outro lado, ressalta que a própria Igreja estaria “saltando por cima da própria sombra”, permitindo aquela “cerimonia secular “sem amém” em seus recintos sagrados”, demonstrando tolerância, aceitação e mostrando-se aberta ao diálogo, mesmo com pessoas que não comungam do seu credo.Essa mudança na percepção sobre o papel e importância da religião na contemporaneidade por parte do nonagenário Habermas, ressalte-se, não quer dizer que pretenda suscitar qualquer intenção de despertar sentimentos religiosos ou que ele próprio, no avançar dos anos tenha enveredado para a religiosidade. Como afirmou recentemente: “sou idoso, mas não me tornei crente”. Apenas se deu conta de que, face ao “descarrilhar” das sociedades globalizadas, a religião poderia constituir-se em possível parceira para enfrentar a crescente desumanização na vivência pública dos homens.


* O autor é doutor em Ciência Política e Sociologia pela Universitat Heidelberg (Ruprecht-Karls, Alemanha). Durante sua carreira profissional especializou-se nas áreas das ciências sociais e filosóficas, com ênfase em movimentos sociais.

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