Por Sérgio Luiz Gadini
A atividade profissional de fiscal do metro (U-Bahn) em Berlim é, talvez, uma das mais enigmáticas funções que caracteriza a capital dos germânicos. Quem chega em Berlim e vai usar transporte coletivo logo fica sabendo que, como não há qualquer sistema de roleta, catraca ou controle de acesso aos sistema públicos, deve-se levar muito a sério, pois o fiscal é uma espécie de lenda onipresente. O esquema de fiscalização vale para todos os sistemas de transporte, que funcionam na Cidade: tram (bonde), ônibus e trem (S-Bahn). E, para,fechar, tem o RER, que no código deles é o trem intermunicipal. A Companhia (pública), que administra os diversos modais de transporte, é a mesma (BVG, na língua deles, disponível no site BVG.de).
Como o transporte da Cidade é dividido em zonas ou áreas (A – centro expandido, B – periferia, e C – metropolitano, entorno ou cidades vizinhas), se você comprar o ticket A deve usar (não sem antes autenticar, nas máquinas em corredores de acesso das estações) apenas na área prevista. Se circular na área B (médio entorno ou bairros não centrais) pode andar na A e B. Mas não arrisque circular na C sem o ticket autenticado para a referida área.
Equivale dizer que o ticket para circular na zona A tem menor valor que o da B e este, por sua vez, maior que a A e menor que a C. Em todos os casos, é preciso levar a sério a lógica germânica: validar o bilhete e seguir as normas deles. Do contrário, se o ‘fiscal’ te encontrar, a multa é $ 60 euros, seja por circular com um bilhete em outra zona que o previsto, se andar sem (perder, por exemplo) ou se esquecer de validar. O custo dos bilhetes, portanto, varia muito. E pode oscilar entre 1,70 e 7,00 Euros a unidade. A diferença do custo não é o modal, mas alcance da linha, pois o valor (unitário, por duas horas ou diário) é o mesmo e não importa qual serviço vais utilizar.
Quem mora na cidade por algum tempo – dias, semanas ou meses – diz que conhece algum usuário (turista ou morador) que foi multado pelo fiscal do metro, responsável pela fiscalização permanente do serviço.
O sistema aberto não cobra nada e tampouco obriga o usuário a comprar o ticket ou obriga a passar por qualquer meio de controle prévio. O usuário, no entanto, sabe que, cobrado pelo ‘fiscal’ sem o ticket dentro do metro ou mesmo com o ticket não marcado para aquela viagem, a multa é certa! E tampouco adianta pensar que, há, sou turista e estou chegando na Cidade? Paga da mesma forma e, pois, melhor nem discutir. Pior ainda se reclamar sem um domínio básico do alemão. Em tais situações, germânicos parecem não dispor de cordialidade e tampouco interesse em falar algo que o alemão.
Por isso mesmo, o ‘fiscal’ de metro – que assim ficou conhecido, embora circule em todos modais de transporte da Cidade – se tornou uma espécie de lenda urbana onipresente em Berlim.
Ele – o ‘fiscal’ – lembra a imagem do popular, que o escritor Luiz Fernando Veríssimo tentou perfilar em texto: é uma pessoa que você não tem a menor ideia de quem pode ser. Não se sabe, ao certo, qual o perfil e tampouco como a empresa contrata tais pessoas para atuar como fiscal. Talvez, por isso o enigma, que se reproduz e faz com que, ao usuário recém chegado em Berlim, ao entrar em um dos modais, começa a buscar traços ou pistas para identificar quem, ali naquele vagão ou carro, poderia ser um fiscal.
O ‘popular’ apresentado pelo Veríssimo é alguém que, na rua, anda com um pacote na mão ou embaixo do braço. Não se imagina o que pode ter dentro, pois o papel não é transparente. Em uma manifestação, o popular está presente, por certo, mas não fala, pouco reage (a favor ou contra) e, geralmente, fica do meio ao fundo da concentração. Quem ousa intimar alguém para rastrear a identidade do popular, logo se decepciona, pois é difícil buscá-lo na multidão, anônima, dos movimentos massivos, que despersonalizam indivíduos. Veríssimo, por certo passou em Berlim, mas difícilmente suspeita que a mesma lógica do popular vale ao enigmático fiscal de transporte na capital alemã.
No U, S, Tram, Bus ou RER, a dúvida gera curiosidade ou até excitação para quem busca alguma pista de onde poderia estar o fiscal, naquele instante, linha e viagem do dia. Seria aquele senhor tipicamente germânico (1,85m, 90kg, que segura um exemplar de diário popular gratuito)? Ou pode ser aquele jovem, com a mesma estatura, mas na faixa de 80kg, que não senta e fica com o celular na mão, enquanto passeia o olho no comportamento de passageiros? Que tal aquele moreno, estatura mediana, com traços de migrante turco, que entra na estação seguinte, senta e observa a mulher que está na outra fila do carro? Pode não ser nenhum deles, hein? Mas, por certo, pela lógica de que a fiscalização se mostra eficiente, alguém ali há de ser!
Como a temperatura média em Berlim oscila mais ao frio a maior parte do ano, razoável suspeitar que um senhor na faixa dos 40 anos, de jaqueta (possivelmente comprado em lojas de produtos importados e acessíveis, a la Primark), e calça jeans, com óculos suspenso na camisa, tem pinta de fiscal. Talvez, mulheres, simples, com roupas básicas de primavera, podem fiscalizar também? Não se sabe praticamente nada! No máximo, suspeita-se, com base em relatos de quem viu alguém ser multado em um metro, ônibus ou trem. E como era o fiscal? Pergunta-se logo ao narrador, pois o desdobramento da multa já se sabe: paga ou vai com o fiscal até um posto policial, na próxima estação!
Os relatos sobre o perfil de fiscais que foram vistos multando passageiros são controversos, variados e plural. O que dificulta qualquer tentativa de padronizar perfil e figura, contratada para um dos serviços mais enigmáticos em Berlim.
Se não há padrão em roupa, hábito ou modo de reagir que identifique o fiscal de metro, o que se sabe – por relatos de flagrados, com ou sem o ticket no exato instante da cobrança – é que o fiscal, que pode ser a pessoa ao teu lado no vagão, te aborda, fala alemão e pede o bilhete, checa na máquina de bolso que carrega e sai, na estação seguinte, em geral sem olhar para o passageiro abordado. Ah, mas isso é comportamento germânico! Pode ser, mas fato é que, deste modo, ajuda a manter o suspense sobre a identidade do ‘dito cujo’.
Existem boatos de que alguns periódicos já tentaram, em variados momentos, fazer um perfil jornalístico do ‘fiscal’ de Berlim. Nada foi publicado, ao menos do que se tem registro na mídia digital.
Em bairros, prédios, escolas e famílias, cogita-se que algum conhecido ou parente, certa feita, tentou participar de um concurso para atuar como fiscal. Adivinha? Isso mesmo: nenhum dos que relatam a tentativa obtiveram aprovação. E qual seria a média salarial e a jornada diária de trabalho de um fiscal? A empresa não informa. Sindicatos de trabalhadores dizem desconhecer quem, entre os milhares de sócios, poderia ser fiscal.
Por essas e outras, suspeitas, que ainda não seriam pistas, fica difícil pensar e, pois, falar o que caracteriza o enigmático ‘fiscal’ de transporte público de Berlim!
O autor é professor, jornalista e pesquisador da área cultural.
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