O mito da Alcatra no Espeto:

(Matéria publicada originalmente na revista laboratorial Nuntiare,
produzida pelos estudantes do 4o ano do Curso de Jornalismo da
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), em 2017)

Na gastronomia, a representação de costumes culturais é definida, normalmente, por duas palavras: “prato típico”. Precisamente no Paraná, temos um exemplo da importância do valor cultural dessa prática gastronômica. Quem vai até as proximidades de Curitiba, capital do estado, principalmente a turismo, não pode deixar de ir a Morretes, para comer o Barreado, prato tradicionalmente conhecido como típico do litoral paranaense e um dos mais lendários do estado.

 

Já em Ponta Grossa esta temática gera questionamentos desde a promulgação da lei do prato típico da cidade: a nomeação da “Alcatra no Espeto”. A Lei nº 10.200, sancionada em 23 de março de 2010, explica que o prato típico foi caracterizado como “típico” pelo Sindicato HBRCG (Sindicato de Bares e Restaurantes dos Campos Gerais). Genilson Fagundes, estudante de licenciatura em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa tem uma visão crítica sobre a escolha e relatou que o prato virou um “boato” nas discussões culturais da cidade. “O prato típico é uma produção elitista. Os critérios de escolha de um prato típico estão vinculados a características de uma determinada classe social, geralmente de uma elite, que dita os procedimentos que os beneficiem com fatores econômicos”.

 

Alcatra no quê?

Caminhando pelo centro da cidade, perto da hora do almoço, fui à busca do prato típico. Entre entradas e saídas dos lugares em busca de um local que vendesse a “Alacatra no Espeto”, encontrei Endyon. Ele, que é atendente de uma lanchonete e restaurante da região central da cidade, me relatou que há quatro anos foi garçom de um restaurante que vendia a “famosa” alcatra no espeto, e tinha como um de seus pratos especializados, o prato típico. Segundo ele, na época, o local vendia mais de 10 pratos da alcatra no espeto em uma noite.

Mas a questão envolve outra demanda: a especialização das churrascarias da cidade. Depois de encontrar Endyon, caminhei por mais três quarteirões e resolvi entrar em um restaurante popular, localizado na região central da cidade. Quando abordei a atendente no caixa e perguntei a ela se o estabelecimento vendia o que eu procurava, ela me lançou outra pergunta que se repetiu algumas vezes naquele dia:

·         Alcatra no quê?

Lucas Perdonsin, proprietário de restaurante há sete anos descreveu que os estabelecimentos que optam por ter esses pratos são raros, pois afirmou que não há apoio de setores públicos por essas questões. Ele acredita também que as pessoas que vem a cidade por turismo, já vem instruídas de que lugares podem encontrar o prato, por isso raramente algum cliente seu faz o pedido do prato típico.

 

 

Aspectos Históricos e Culturais

 

Um fator que pode denominar se um povo é faz parte daquela cultura ou não, é são seus costumes, suas tradições e até mesmo seus valores culturais. Na expressão corporal, pode ser o Bumbá – Meu- Boi – costume forte na região nordeste; a Quadrilha prática conhecida no país inteiro e que pode ser facilmente reconhecida se estiver ao som de “Pula fogueira iá iá” ou até mesmo Vanerão e a Dança Gaúcha no Rio Grande do Sul. Essas práticas chamadas de “típicas” são atreladas muito facilmente às localidades em que foram geradas. Por exemplo, se eu falar de Samba, estarei certa que você pensaria no calor, e no Rio de Janeiro ou na Bahia. Salvador. Brasil. Porque o samba, de origem indígena, é por descendência baiana. Ao mesmo passo de que se eu falar do tango, você não hesitaria em pensar na Argentina.

Essas tradições são adventos de raízes culturais de cada região e localidade. Daniel Frances, professor de História nos ajudou a entender essa questão e explicou que o prato típico é uma herança de comportamento, costumes e hábitos da história de uma localidade.  “Um prato típico guarda em si a essência de um povo colonizador de um legado de história. Não creio que ele continua com o mesmo valor que tinha em décadas passadas devido às mudanças comportamentais e infelizmente a perda gradativa das raízes culturais de muitas pessoas”.

Daniel Frances relatou que a escolha de pratos típicos que levem em consideração outras demandas que não as de caráter histórico e cultural, trazem um impacto paradoxo. Segundo ele, por um lado a escolha pode atrair pessoas de outras localidades através do turismo, mas ao mesmo tempo a mesma escolha pode anular outros pratos devido à supervalorização de um elemento apenas.  “Minha visão é bem crítica porque a escolha teve um caráter mais comercial do que tradicional. Mesmo se tendo estudos e pessoas muitos capazes para poder definir valores alimentares de tradição com mais profundidade e conhecimento isto acaba sendo delegado a grupos de poder sem capacidade de ter o olhar crítico e verdadeiro da cidade em suas épocas remotas”, avaliou.

 

A Professora de gastronomia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), Silvana Graudenz Muller, relatou que trata a gastronomia que identifica uma localidade como cozinha tradicional, e não precisamente de “Prato Típico”. Para Silvana a cozinha tradicional ou prato típico vai para além de uma questão histórica e contempla também as questões de Patrimônio Cultural Imaterial e também o Turismo.

 

A Professora relatou que a palavra “típico” pode ter uma relação equivocada, pois pode ser um prato que tem uma relação local e histórica, ou ainda aquele que as pessoas encontram facilmente.  “Aqui em Florianópolis pessoas de fora do contexto da cidade fizeram uma pesquisa de amplitude rasa a respeito de pratos típicos e os turistas e leigos na questão de identidade apontaram como um dos pratos sendo sushi, pois tinha em muitos lugares, muitos bares, restaurantes e tele entrega de sushi. Fizemos um movimento com um grande grupo Gestou, compostos por várias entidades, inclusive universidades para retomarmos a pesquisa e com critérios bem fundamentados na história e cultura de Florianópolis, excluímos o sushi e permaneceram aqueles pratos que tinham respaldo quanto ao uso por várias gerações”.

Silvana explicou ainda que a discussão sobre escolhas de pratos típicos de regiões e localidades é uma questão divergente, pois contemplam demandas que envolvem o turismo, produção e pluralidade da cozinha.

“Em Florianópolis, estamos buscando fazer uma distinção bem clara do que é cozinha tradicional e cozinha contemporânea. Temos a tainha escalada, a casquinha de siri, o pirão de peixe, entre outros, já classificados em pesquisa como pratos tradicionais de Florianópolis e executados pela população. E temos a ostra (de cultivo) como um exemplar da cozinha contemporânea. Porém, muitas vezes uma cidade não tem somente um prato tradicional, pode ter no caso de Ponta Grossa, tanto a Alcatra no Espeto mais da elite como também outro prato mais popular, uma não exclui a outra. Elas podem conviver juntos”.

 

A professora do Departamento de Turismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Rubia Mascarenhas, que acaba de lançar o livro “Gastronomia nos Campos Gerais”, também questiona a escolha dos pratos típicos das cidades.  “Foz do Iguaçu, por exemplo, fez a escolha do prato típico da seguinte forma: chamaram doze chefes de cozinha de hotéis renomados colocaram todos dentro de uma sala fechada e surgiu então o prato típico. Hoje aquele prato é considerado típico por força da lei, mas ele não é comercializado”

Rubia defende que é impossível elencar somente um prato como típico, considerando a pluralidade na cultura e na gastronomia da região dos Campos Gerais. Ela conta que tem defendido mais o termo “pratos turísticos”, que dão maior possibilidade de uma mescla e combinação de pratos por região.  “É necessário ter prato típico? Se tem que ter prato típico tem que pensar, mas ele é realmente típico?.

 

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