O perigo dos esquemas

Não deixa de ser um alento um festival do porte do Fenata abrir a temporada trazendo o escritor mineiro João Guimarães Rosa ao palco, um dos maiores nomes da literatura brasileira, autor do clássico ‘Grande Sertão: Veredas’. No caso desta 39ª edição, o público da noite de abertura do festival, nesta sexta-feira (4), assistiu a uma adaptação do conto Miguilim feita pelo diretor e dramaturgo curitibano Edson Bueno, que já fez história no Fenata (com O Grande Deboche, ganhador do prêmio de melhor espetáculo juntamente com a já lendária montagem de Toda Nudez Será Castigada, dirigida pelo saudoso Zé Teodoro, em 1985).

A montagem, homônima ao conto, é dirigida por Laércio Ruffa, que trouxe a Ponta Grossa um elenco renovado do grupo Tanahora, da PUC/PR, em Curitiba, que já tem 30 anos de história. Tão renovado que leva três crianças ao palco. Uma delas é Tiago Galan, de nove anos, que interpreta justamente o personagem-título. Ruffa também já ganhou como melhor diretor por Bella Ciao, no Fenata de 1993.

O espetáculo conta a história de um garoto pobre – Miguilim –, de uma família sofrida do interior de Minas Gerais, que, em meio aos problemas de educação, miséria e muitos conflitos, mostra força de vontade e esperança, calcada em sonhos que vão além dos limites da região onde mora. Perto de sua casa, há um monte que não poderia ser ultrapassado. Mas Miguilim sonha em descobrir o que a vida reserva para ele “do lado de lá”.

Percebe-se nitidamente que a montagem do Tanahora ainda tem uma longa estrada para percorrer. Não só pelo elenco bastante heterogêneo, como também pelas opções de montagem e direção. O que chama a atenção, mais que a ousadia de se adaptar um texto complexo e por vezes árido – que mostra a genialidade de Rosa, já antecipando alguns dos melhores momentos de Grande Sertão –, é a coragem de levar essa empresa à frente no palco. Com essas duas pontas do processo, por assim dizer, Ruffa optou por pesar a mão na direção, especialmente no desenho coreográfico dos atores. E ele acerta ao colocar atores, no fundo do palco, caminhando lentamente – como a mostrar a vida lenta do sertão. Ou quando faz Miguilim e seu pai correrem em círculo, mas em sentidos contrários. Mas, se a mão pesada da direção pode ter sido talvez o único caminho no caso de unir elenco jovem mais adaptação de texto difícil, o espetáculo resulta em um esquematismo por vezes rigoroso. Consequência disso é uma montagem que em alguns momentos chega a ser monocórdica, o que dificulta a apreciação de cenas muito poéticas, nas quais se somam também a sonoplastia e a iluminação – um dos pontos altos do espetáculo, aliás. Para usar até mesmo uma imagem bastante rosiana, falta o elenco se sentir à vontade no palco para que o espetáculo possa ‘voar’.

Outro cuidado que se deve tomar é com a articulação vocal dos atores. Dependendo de onde estiver o espectador, a compreensão do espetáculo torna-se muito difícil.

De qualquer forma, Miguilim prendeu o público durante 70 minutos. Prova de que é um bom espetáculo. Mas é importante que se diga também que a disponibilidade – e, por que não dizer, a generosidade – de um público de abertura do Fenata pode ser maior do que uma recepção a princípio favorável ao espetáculo. Teatro tem disso. E é preciso muita cautela ao se aferir a aceitação de uma montagem por parte da plateia.

 

*Helcio Kovaleski é crítico de teatro desde 2000, quando começou a escrever para o site Convoy. Desde 2001, publica regularmente críticas sobre os espetáculos do Fenata no jornal Diário dos Campos. Também já publicou críticas de espetáculos que vieram a Ponta Grossa em outros períodos do ano. Entre 2002 e 2004, escreveu críticas de cinema no jornal d’pontaponta e, entre 2005 e 2006, críticas de televisão no jornal cultural Grimpa.

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