Os devaneios da saudade

Aline Sviatowski

A protagonista não possui um nome que faça diferença para além de leitora. Seria possível chamá-la de Carolina, ou de Ana, ou de Juliana e ainda assim não faria diferença. Levando em consideração que ela é alguém que lê o mundo, como quem lê um livro, considero uma referência que sustenta a si mesma, que a define. O substantivo “leitora” exerce função simultânea de adjetivo. Se você pudesse se chamar algo que te define, o que seria? Dou-me essa liberdade. Refeita em retalhos e fragmentos de memórias, impera nela incerteza de ser. A leitora recolhe pedaços do que foi e do que é. O ontem, o hoje e o talvez coexistem no plano da treslouca realidade. Sentada em uma beirada de escada, ela ouve músicas antigas enquanto contempla seu jardim bem cuidado por sua mãe, uma primorosa jardineira e amante das flores. É possível observar na beleza daquele espaço o carinho despendido por sua progenitora. Entre as letras musicais, há uma autodescoberta em algum refrão musical que antes foi ouvido com neutralidade pela leitora, no entanto, agora desperta pensamentos frescos. Frescor de descoberta. Uma construção cíclica de personalidade. Enquanto que antes não haveriam referências para compreender uma acepção do que pretendeu dizer o artista, agora há. “Tristeza não tem fim, felicidade sim”. “Esse Vinícius de Moraes, para além de poeta, parece profeta” pensou ela. Quem diria que tamanho caos, poria um breve (talvez) ponto final nos mínimos e cotidianos prazeres ínfimos de (co)existir em sociedade. O luto. O tédio. A fome. A morte. O silêncio. O vazio. Pois bem, a tristeza ainda não tem um fim. Entre as tristezas, surge a imperativa ânsia por fuga. Fugir para onde, se os problemas não abandonam. Sim, para os hobbies. Exato, para o trabalho. Certamente, para a meditação. Em certo ponto, não há mais para o que recorrer. E a leitora tentou todas essas fugas, muitas vezes simultaneamente. Fica a constatação que ela concatenou: não se foge da tristeza sem distanciar-se ainda mais da felicidade. Enfim, se o que nos constrói é a eterna relação entre o que nos habita e o que habita o mundo externo, quando há um recorte do mundo externo, também é recortada a interna constituição mental. Há rupturas. Fugir não é uma solução, é somente um remendo. Após concluir esse pensamento, outros fenômenos iniciaram para a leitora. Os devaneios da leitora começaram por volta da terceira semana de isolamento social. Foi quando ela olhava para a parede do seu quarto. Surge dentro de seu panorama íntimo o enaltecimento de um pedaço específico – mas nada material – do que considera como marcante para se sentir viva, memórias afetivas. Primeiro, uma ínfima luminosidade, depois, crescente luz a invade o sentimento. Pronto. Saudade. Essa palavra peculiarmente brasileira que retrata a falta que algo faz de forma tão pontual, que talvez seja intraduzível em palavras. Sua saudade tinha nome: mar.

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