Para mudar a mentira de uma versão oficial

O domingo mereceria uma data diferente no calendário. Ele caiu num 31 de Março, dia reconhecido por setores conservadores da sociedade como marco do golpe militar de 1964. Apesar da passagem do tempo, ainda hoje se convive com a mentira de versões oficiais oferecidas até 1985 e com os fantasmas dos mortos e dos desaparecidos políticos. Por outro lado, a cultura e o pensamento têm conseguido ilustrar os cidadãos dos anos 2000 sobre a catástrofe nas instituições públicas e o drama humano condicionados pela ditadura.

O regime militar promoveu a tortura de modo sistemático e foram comuns “acidentes de trabalho”, quando o “depoente” terminava morto depois de sucessivas sessões de castigos corporais. Era recorrente oferecer a versão do suicídio para explicar óbitos nas salas de interrogatório. Vladimir Herzog (1975) e Alexandre Vannucchi Leme (1973) estão no grupo dos que seu assassinato mediante o flagelo foi seguido da atribuição da culpa para a própria vítima.

Alexandre Vannucchi Leme era natural de Sorocaba, tinha 22 anos e estudava o quarto ano de Geologia da USP. Foi detido por agentes do DOI-Codi para prestar informações sobre sua participação em atos da Ação Libertadora Nacional (ALN) realizados justamente quando se recuperava de uma cirurgia para retirar o apêndice. Ao saberem de sua morte, seus colegas de universidade paralisaram as aulas em revolta. Reconheciam nele um líder, um amigo e uma pessoa como eles.

A família de Alexandre recebeu duas versões para seu falecimento. Uma foi a de suicídio com uma lâmina de barbear. A outra foi de atropelamento por um veículo na região do Brás, depois de fuga. No IML, os pais iriam descobrir que o corpo do filho havia sido enterrado como indigente no Cemitério de Perus com uma pá de cal sobre o corpo para acelerar sua decomposição. Apenas 10 anos depois da ocorrência, eles puderam resgatar seus restos mortais.

No dia 15 de março passado, o esqueleto de dinossauro e a rocha da exposição permanente do Instituto de Geociências da USP dividiram espaço com um ato público em que Alexandre recebeu sua anistia política e a família de Vladimir Herzog obteve um novo atestado de óbito, recuperando um atraso de 38 anos. A sessão foi concorrida por professores, estudantes, políticos, ativistas e tipos diversos de cidadãos interessados na história brasileira.

Rodas de conversa lembravam histórias a se registrar e um panfleto circulava distribuído de mão e em mão, informava sua procura por entrevistados para documentário dedicado a tema inédito na filmografia sobre a ditadura. Ivo Herzog, filho de “Vlado”, usou sua declaração para destacar a importância de haver um documento expedido por um juiz atestando a mentira da versão oficial de 1975 – a do suicídio. No novo texto, a causa da morte do então diretor de jornalismo da TV Cultura são as lesões e maus-tratos sofridos durante interrogatório no DOI-Codi, órgão ligado ao Exército.

Apesar de o estado de exceção ser fator de vergonha para um povo livre, até novembro de 2010, a comemoração do 31 de Março ainda constava do portal do Exército na internet e, em 2013, Clubes Militares continuam a homenagem a referida época. Basta consultar a manifestação assinada no Rio de Janeiro pelos presidentes do Clube Militar, do Clube da Aeronáutica e do Clube Naval. Não é à toa que o Grupo Tortura Nunca Mais (RJ) há 25 anos promove o Prêmio Chico Mendes, entregando o título a dez pessoas e entidades que tenham se destacado em lutas de resistência no Brasil e América Latina. A sessão desse ano será na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e um dos contemplados é o cineasta Silvio Tendler.

Para montar o mosaico dos anos de chumbo, é preciso se informar. As artes conseguem nos ajudar a interpretar de modo mais qualificado o período. Não perde o programa quem procura: (a) o doc “Cidadão Boilesen” (Chaim Litewski, 2009 / 92 min), um dos vencedores da 14ª edição do Festival Internacional de Documentários – É Tudo Verdade; (b) o drama “Cara ou coroa” (Ugo Giorgetti, 2012), com Walmor Chagas interpretando a cativante figura de um militar da reserva, herói da FEB; (c) o romance “K.”, de Bernardo Kucinski (Expressão Popular, 2011; R$ 18,00), menção honrosa do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2012. Esta, por sinal, é uma narrativa de pai para filha.

Os atos públicos, as artes e o trabalho de pesquisadores têm permitido que, nos anos 2000, a mentira deixe de predominar em versões oficiais sobre o nosso passado recente. Afinal, não são apenas fatos políticos. O que está em jogo são histórias de vida, tanto das pessoas que se foram quanto daquelas que ficaram. Dar uma resposta para cada caso de morto ou desaparecido político é um dever do estado brasileiro. É o mínimo que se pode fazer.

Texto de Ben-Hur Demeneck

* O autor é jornalista formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e doutorando em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

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