Um circo teatro ou teatro (popular) no circo?

A literatura ‘clássica’ brasileira (me refiro às ‘leituras indispensáveis’ tão cobradas em vestibulares) tem muitas passagens que se tornam incompreensíveis ao leitor por não fazer parte de seu cotidiano, pela linguagem rebuscada, pela singularidade enigmática das histórias, pela transcendentalidade do autor, ou inúmeros outros aspectos que dificultam a leitura. Um dos tradicionais exemplos é o livro O Guarani, de José de Alencar em sua fase indianista.

O amor do índio Peri por Ceci, a paixão platônica de Álvaro por Ceci, as batalhas com os Aimorés e o mito do início de uma civilização tipicamente brasileira dão o tom à obra, escrita em formato de folhetim entre janeiro e abril de 1857, no Correio Mercantil. Todo este complexo enredo, que se passa em terras tupiniquins, faz com que a história tenha dificuldades de impenetrar no cotidiano contemporâneo das leituras.

Para tanto, é necessário uma ‘tradução’, que vem, obviamente, carregada da visão de quem adapta. É aí que muitas peças teatrais pecam. Na adaptação, alguns roteiristas/diretores tentam trazer o literal ou o mais próximo possível do original. E não é esse formato que o diretor Pedro Uchôa traz para o espetáculo “O Guarani: O amor de Peri e Ceci”, apresentado pelo Circo Teatro Sem Lona, de Maringá-PR, no SESC Ponta Grossa, na noite de hoje, 03.

Com fortes marcas do Teatro Mambembe, a peça tem mais características de teatro de rua, popular, do que circo (como anunciado como ‘circo teatro’ e encenado embaixo de uma lona). O cenário é próprio/prático para intervenção em rua, a sonoplastia não tem impedimentos de aparelhagem, o figurino é chamativo/convidativo e, principalmente, os quatro atores (clowns) têm facilidade para lidar com o público, com a interferência popular. Principalmente Mateus Moscheta, que interpreta ‘Secura’ e tem uma simpatia e aproximação com os espectadores.

O enredo traz a metalinguagem de uma construção de peça teatral, com a figura do diretor sempre ali ao lado, regendo as interpretações através da sonoplastia (feita ao vivo, com flauta, sanfona, percussão e outros instrumentos improvisados, o que traz uma sensação mais emocional, presente e próxima ao espetáculo).

A adaptação de Uchôa consegue captar a complexa narrativa e transforma-la em uma simples história de amor, sem deixar de engrandecer a obra de José de Alencar. Para tanto, utiliza altas doses de humor, característico do teatro popular, cenários e figurinos bem vistos esteticamente, falas simples, porém, impactantes, metalinguagem prazerosa, na medida certa, música popular brasileira e seu olhar. Um olhar singelo do humor e da brasilidade, para contar um clássico da literatura que viaja no tempo e no espaço.

por Eduardo Godoy

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