Antes, algumas considerações.
A qualidade técnica e artística do júri da mostra competitiva de espetáculos adultos do 39º Fenata, encerrado em 11 de novembro – formado por Antonio José do Valle, o Toninho, que também é um dos curadores do festival; Humberto Sinibaldi Neto, criador do Festival de Teatro de São José do Rio Preto (SP), que veio pela primeira vez como jurado, mas que já havia participado do Fenata na década de 1970; e Reinaldo Santiago, ex-professor de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/SP) – é indiscutível. É difícil imaginar time melhor.
Também não se discute a qualidade do elenco do grupo Os Geraldos, de Campinas (SP), que participou da mostra adulta deste ano com dois espetáculos: “Hay Amor!”, apresentado no dia 7, e “Números”, no dia 9. Realmente, o grupo formado por cinco atrizes e dois atores, todos egressos do curso de Artes Cênicas da Unicamp/SP, é muito bom.
Outro aspecto a ser lembrado é que este crítico só escreveu análises dos espetáculos da mostra adulta, como vem acontecendo há alguns anos, aliás. Primeiro, por uma questão de impossibilidade logística de se acompanhar as apresentações das outras mostras (a também competitiva de teatro para crianças e as de rua, bonecos, “Às dez em cena”, paralela e especial). E, segundo, porque a mostra que define o festival é exatamente a adulta, pois foi assim que o festival começou há 38 anos.
Ocorre que, ao se analisar o resultado da premiação da mostra adulta do 39º Fenata, é estranho constatar determinados, digamos, desvios de rota. Um deles – o principal – é a confirmação de uma tendência que vem se verificando há alguns anos: a de uma certa ‘paulistanização’ do Fenata.
Não que não se deveria premiar os atores paulistas. Longe disso. A questão não é essa. Algumas premiações, como se verá logo a seguir, foram merecidas. O problema é o critério de dois pesos e duas medidas adotado pelo júri durante a escolha das premiações.
O prêmio especial do júri de incentivo ao teatro concedido ao trio de atores-mirins Tiago Galan, David Faria e Izabelly Lira, do espetáculo “Miguilim”, apresentado pelo grupo Tanahora, da PUC/PR de Curitiba, na noite de abertura (4), por exemplo, foi uma bela homenagem. Realmente, as três crianças fizeram a diferença na montagem dirigida por Laércio Ruffa.
Os cinco prêmios a “Ser Tão Grande”, do grupo Arte & Fatos, de Goiânia (GO), também foram merecidos: de iluminação, para Rodrigo Costa Assis, que foi brilhante num festival onde outros trabalhos foram igualmente significativos – como o próprio “Miguilim’, por exemplo; figurino, muito criativo, com a ousadia do bordado das roupas dos atores com frases recorrentes do romance “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, algo que lembra muito o artista plástico Artur Bispo do Rosário; de ator, para Kleber Alves, soberbo como Riobaldo (um prêmio dividido com Douglas Novais, de “Hay Amor!” e “Números”); direção, para Danilo Alencar, um mestre em realizar grandes espetáculos e tirar do elenco muito mais do que eles imaginam ter; e, é claro, de melhor espetáculo – outro prêmio dividido, com “Hay amor!”.
Igualmente merecido foi o prêmio de melhor cenografia para “Pé na Curva”, da Cia. de 2, de São José dos Campos (SP). Realmente, a árvore, lembrando a peça “Esperando Godot”, e a cadeira de rodas, “Fim de Jogo”, ambas de Samuel Beckett, foram belas criações.
Agora, os seis prêmios para “Hay Amor” e outros seis para “Números”, a maioria deles dividida entre si – uma maneira “dupla” de se ganhar prêmios que, até onde se sabe, é inédita na história do festival –, não deixa de ser uma premiação bastante inflada para um grupo que, embora seja bom, não precisava de tanto assim. Mas o problema, como se verá a seguir, não está no grupo, mas sim na decisão do júri. Sem falar que ficou até mesmo meio confuso identificar os prêmios.
Os de melhor atriz coadjuvante (Carolina Delduque), melhor ator coadjuvante (Gustavo Valezi), melhor atriz (Júlia Cavalcanti) e melhor ator (Douglas Novais, dividido com Kleber Alves, de “Ser Tão Grande”) foram concedidos pelos dois espetáculos. “Hay Amor” ainda ganhou como melhor texto original e também como melhor espetáculo (dividido com “Ser Tão Grande”).
Além dos quatro prêmios aos atores e atrizes, “Números” ainda ganhou como melhor maquiagem (Heloísa Cardoso) e melhor espetáculo pelo júri popular. Os destaques de “Números” são Júlia Cavalcanti e Douglas Novais, em especial este último, que interpretou um personagem (Cícero) de maneira melancólica e inesquecível.
No entanto, a avaliação é de que a decisão do júri pecou ao não premiar, por exemplo, Ariane Guerra, de “Tartufo”, do grupo Farsa, de Porto Alegre (RS), como melhor atriz coadjuvante. A premiada Carolina Delduque é boa atriz, mas a performance de Ariane está muito acima da sua. Na noite do dia 8, a atuação de Ariane foi perfeita.
Outra injustiça foi em relação ao prêmio de melhor atriz. Não há dúvida de que Júlia Cavalcanti também é boa atriz (sua lhama, em “Números”, por exemplo, é marcante), mas por que não conceder esse prêmio a Lucia Bendati, de “Tartufo”; A Mirelle Araújo, de “Ser Tão Grande”; ou até mesmo a Claudiane Dias, de “Arquivo Vivo”, do grupo Farroupilha, de Ipatinga (MG)? Nas mãos de qualquer uma dessas atrizes o prêmio ficaria muito bem, e o júri perdeu a chance de dar um certo equilíbrio à premiação. Mesmo que ele fosse dividido com Júlia.
“Tartufo”, que teve uma apresentação perto da perfeição, ficou somente com o merecido prêmio de melhor sonoplastia, para Marcos Chaves, um profissional competente que já havia ganhado na mesma categoria em “O Avarento”, no Fenata de 2010. Mas cadê, por exemplo, pelo menos uma indicação de melhor diretor para Gilberto Fonseca? E, já que a onda, de novo, foi dividir prêmios, por que não colocar essa montagem também como melhor espetáculo ao lado de “Ser Tão Grande” e “Hay Amor!”?
Bem feitas as contas, se for considerar cada prêmio recebido pelos dois espetáculos do grupo “Os Geraldos” como individual e mais a premiação à Cia. de 2, os paulistas ficaram com 13 estatuetas. Bem mais, portanto, do que as sete de outros três Estados – cinco aos goianos do Arte & Fatos, um aos gaúchos do Farsa e um aos curitibanos do Tahahora.
Por último, uma lembrança. A de que ”Hay Amor!” não estava programado para figurar na programação do 39º Fenata. Conforme consta do site oficial do festival (www.uepgcultura.com.br/fenata, acessado no dia 13 de novembro), o espetáculo selecionado para a mostra adulta era “Tudo Quase Nada”, do grupo Pé de Vento Teatro, de Florianópolis (SC). Conforme a explicação de Toninho do Valle a este crítico, na noite do dia 9 de novembro, em frente ao Cine-Teatro Ópera, em virtude da greve dos Correios (encerrada em 16 de outubro), alguns grupos tiveram dificuldade de enviar a sua documentação à organização do festival. Segundo o próprio Toninho, “Hay Amor!” era a terceira opção da seleção da curadoria.
Uma ironia, sem dúvida, o fato de um espetáculo não ter sido selecionado como primeira escolha pela própria curadoria e, assim mesmo, dividir o prêmio de melhor espetáculo do 39º Fenata com outra montagem. E, aqui, abre-se outra discussão. A dos caminhos que são apontados pelo festival.
É significativo que duas montagens completamente diferentes entre si dividam o prêmio de melhor espetáculo. “Hay Amor!”, é bom que se diga, é um show muito bem executado, mas que tem pouco de teatro. Até porque a direção de Verônica Fabrini, também formada pela Unicamp, optou por uma interpretação que definitivamente não desce a instâncias mais profundas. Ao contrário de “Ser Tão Grande”, um belo tour de force demonstrado por todo o elenco. Edson de Oliveira, por exemplo, com seu menino Miguilim ou com Riobaldo jovem, é muito bom. De Kleber Alves, então, nem se fala.
Na mesma linha, é significativo também que “Números” – que é muito mais teatro do que “Hay Amor!” – tenha ganhado como melhor espetáculo pelo júri popular, vencendo “Hay Amor!” e “Tartufo”. Ambas as montagens do grupo campineiro não tratam de histórias com começo, meio e fim. São espetáculos fragmentados. “Números”, diga-se de passagem, faz uma bela homenagem ao teatro-circo que era praticado na Europa entre o final do século 19 e o início do século 20, mas principalmente na Rússia, com seu “teatro de atrações”. Se os dois venceram nas principais categorias do festival, isso seria um indício do tipo de público atual que frequenta os teatros? Se for, que público é esse a que o teatro está tendo de se adaptar, então? Seria um sinal dos novos tempos, impregnados pelas redes sociais e pela fragmentação ‘hiperlinkada’ cada vez mais intensa da internet? É um apontamento ainda a se confirmar, mas não deixa de ser relevante.
Em resumo, a conclusão a que se chega é a de que é preciso repensar o Fenata. No próximo ano, o festival chega à marca histórica da 40ª edição. Está em discussão se ele continuará competitivo ou não. Tomara que continue. Se se optar por ser somente uma mostra, o risco de o Fenata se apagar ao longo do tempo devido à perda da sua credibilidade – reconquistada a muito custo desde o início da década de 2010 – é muito grande. Imagine ele ser comparado a verdadeiras bombas tipo o Festival de Teatro de Curitiba, por exemplo? Seria o fim dos tempos.
Também se cogita fazer do 40º Fenata uma mostra, convidando as melhores montagens que estiverem em cartaz no próximo ano para participarem da edição comemorativa do festival. É outro caminho equivocado. No mínimo porque, do ponto de vista dos grupos, é inegável e legítimo o pleito de concorrer em um festival num ano festivo.
Mas um dos principais pontos a serem repensados imediatamente, mesmo, é essa tendência de se privilegiar a premiação de espetáculos paulistas. É estranho imaginar que um festival que tem a palavra “nacional” em sua sigla tenha somente dois curadores – que assistem aos DVD’s dos grupos inscritos em todas as categorias – e ambos sejam do Estado de São Paulo. E que chega à sua 39º edição contando somente com jurados paulistas. E que, ainda por cima, traga dois críticos de teatro de… São Paulo. Pergunta básica: em todo o território nacional, constituído de 27 Estados mais o Distrito Federal, não existe outras produções teatrais de qualidade e outros profissionais que possam ser curadores, jurados e críticos? O próprio Fenata é pródigo em mostrar justamente ótimas produções de outros Estados. Logo, é imperativo que isso tem que acabar, sob o risco sério de o Fenata se tornar um quintal da produção teatral (leia-se montagens e profissionais) que se faz em São Paulo.
E, mais uma vez, não que as montagens paulistas não possam ser premiadas no Fenata. Longe disso. Tal conclusão seria uma insanidade. Só para citar uma premiação indiscutível: em 2009, durante a 37ª edição do festival, quem ganhou praticamente todos os prêmios importantes foi “Por Que a Criança Cozinha na Polenta”, da Companhia Mugunzá, de São Paulo (SP), dirigido por Nelson Baskerville. Simplesmente, esse espetáculo foi um dos melhores de que se tem notícia na história do Fenata.
E pensar que são justamente os espetáculos paulistas que nada têm a ver com o que está acontecendo no Fenata… Paradoxal, isso.
*Helcio Kovaleski é crítico de teatro.
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