Desde que apareceu pela primeira vez em “Homem de Ferro 2” (2010) a personagem de Natasha Romanov (Scarlett Johansson) sempre teve dois traços distintos dentro do universo cinematográfico da Marvel. Sua letalidade de ex-espiã russa em combate e, principalmente, e seu grande ombro amigo para os companheiros vingadores.
Sem muitos detalhes do passado ou vida fora do supergrupo, a personagem de Johansson sempre foi um pilar de sustentação, tanto em termos de integridade física quanto emocional e afetiva entre os aliados em seus dez anos de estadia no MCU. Como a personagem foi construída a base do arquétipo do espião que muda de lado, o tom de mistério lhe serviu bem enquanto coadjuvante, mas deixou a desejar conforme sua presença foi sendo cada vez mais importante. Afinal, o que movia esse instinto de família e lealdade em alguém formado e habituado a ambientes de violência e interesses ambíguos?
Tentando compensar uma década de desenvolvimento negligenciado a uma de suas maiores estrelas, a Marvel lança “Viúva Negra” para dar mais peso e conteúdo à personagem que já havia se despedido desse universo em “Vingadores: Ultimato”.
Passando-se após os eventos de “Capitão América: Guerra Civil” (2015), o longa-metragem acompanha como a foragida Natasha Romanov é obrigada a voltar para o local onde a persona da Viúva Negra foi forjada. Tendo de lidar com seu passado traumático de mentiras e abusos, Natasha busca por sua primeira família para conseguir definir as bases de seu futuro.
Os primeiros dois atos do filme nos fazem pensar que estamos diante de uma das melhores produções do estúdio de Kevin Feige e cia. Ao melhor estilo “Ultimato Bourne” (2006), o roteiro de Eric Pearson e a direção de Cate Shortland costuram momentos humanos entre as cenas de ação para explorar a truncada e simultaneamente doce relação de Natasha com a irmã Yelena (Florence Pugh), com o pai Alexei (David Harbour) e com a mãe Melina (Rachel Weiss).
Mesmo sabendo que todos eles desempenharam apenas um papel enquanto família no passado, eles ainda são apegados a essa dinâmica por ser o mais próximo que já tiveram de uma de verdade. Vendo essa retrospectiva e acrescentando o histórico de abandono sofrido pela personagem na primeira infância, não é de se admirar que Romanov seja tão empenhada e disposta a formar laços de afeto e confiança genuínos com seus companheiros vingadores.
Tal dinâmica conflitante rende ótimos momentos que sedimentam o valor e habilidades de Natasha, mas que também servem para que reavaliemos tudo que conhecemos sobre ela (a gag recorrente sobre como ela costuma posar é ótima). Se antes ninguém ousava afronta-la em uma reunião dos vingadores por estarem falando com a Viúva Negra, é curioso e instigante ver como nesse novo contexto ela é “apenas” a irmã mais velha Nat tentando pôr ordem na mesa durante um jantar com a mãe enérgica, o pai saudosista e boçal e a irmã rebelde.
Com o roteiro sendo desenvolvido após a erupção do movimento #MeToo (2017 – presente), o filme veste essa energia em seu âmago. O vilão, um homem frágil e megalomaníaco que não se importa de usar mentes e corpos de moças indefesas, é um claro adendo ao abominável produtor Harvey Weinstein, o estopim do movimento. A própria caracterização de Ray Winstone parece ter sido especialmente moldada pelo departamento de arte para emular a figura titânica e ultrajante de Weinstein.
A escolha consciente por parte de Johansson, que também atua como produtora executiva da obra, é sutil para o contexto da Marvel mas identificável em qualquer outro. Ao incluir tal alegoria a narrativa contribui para que a mensagem positiva de enfrentamento e vitória contra o abuso patriarcal seja potente em seu alcance.
Com tais méritos de desenvolvimento e alusões que deixam o filme em diálogo com seu tempo, é uma pena que o terceiro ato seja tão pedestre e nocivo a ponto de amortecer tudo até então bem construído. Pressionada por convenções do gênero de ação que destoam do resto do filme, “Shortland” orquestra um espetáculo grandioso e barulhento, mas de efeito oco por separar e moldar de forma tão pobre os vários clímaxes que a narrativa pedia. Tal demérito é compartilhado com o roteiro visto que algumas batidas das cenas são tão mal organizadas, que nem a edição poderia salvar.
O resultado final não é ruim, é apenas amortecido pela queda de qualidade. Como isso ocorre no terceiro ato (o qual o teórico da narrativa cinematográfica Robert Mackee argumenta que é a razão de existir de um filme), o sentimento de frustração é amplificado e pesa contra o restante do longa.
Ainda que tardiamente produzido, o filme solo da Viúva Negra é engajante o suficiente para nos fazer ter a certeza de que a personagem tinha todos os requisitos para ser uma das primeiras a receberem um filme solo. A obra honra a personalidade e habilidades de Natasha assim como o comprometimento de Johansson, mas é inegável que ambas, enquanto encarnes da primeira a heroína do MCU, mereciam um desfecho melhor.
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