Mães de jovens negros mortos pela polícia lutam por justiça anos após crimes

Homenagem a Ruhan Luiz Santos Machado. Foto: Suzete Zaira

Taxa de mortalidade de jovens negros por intervenção policial representa mais de 80% das vítimas

Vidas interrompidas precocemente por ações violentas de agentes do Estado revelam um padrão alarmante: a cor da pele e o CEP ainda define quem tem o direito de viver. Esta reportagem busca olhar além das estatísticas e mostrar os rostos, os sonhos e as histórias dos jovens que foram mortos pela polícia. Entre eles, está Ruhan Luiz Santos Machado, de apenas 19 anos, executado por policiais militares em Curitiba, no dia 22 de outubro de 2018.

Naquela noite, era véspera da formatura em Pedagogia de Suzete Zaira dos Santos, mulher preta da periferia, ex-catadora de papel, ex-diarista, ex-frentista de posto de combustível. “Me preparei com muito esforço para o ENEM e consegui passar com bolsa de 100% pelo PROUNI. E no dia em que eu deveria estar me formando, eu estava enterrando meu filho”, conta Suzete.

Ruhan havia passado o dia na autoescola, terminando suas últimas aulas teóricas. Precisava da carteira de habilitação para frequentar a faculdade com segurança e realizar o sonho de cursar direito. Estava decidido a usar o conhecimento jurídico para transformar realidades como a dele e de tantos outros jovens da periferia. Filho de uma mulher politicamente engajada, cresceu cercado de debates sobre justiça e igualdade social.

Naquela noite, após o assassinato de um familiar de um policial em outro ponto da cidade, a PM entrou na região do Cajuru, onde o pai de Ruhan morava. Ruhan estava jogando na casa do primo, com mais quatro amigos. Um deles saiu para fumar e, ao ver a aproximação da viatura, assustado, correu de volta para dentro e trancou o portão. A polícia arrombou o cadeado e invadiu o terreno. Segundo relatos de familiares e testemunhas, os policiais entraram atirando. Dois dos garotos conseguiram pular o muro. Ruhan, ferido por um tiro de fuzil na perna, foi alvejado outras sete vezes.

Os dois jovens que permaneceram no imóvel foram rendidos e obrigados a se ajoelhar. A irmã e o pai de Ruhan, que moravam perto, ouviram os tiros e correram para o local. Chegaram a tempo de presenciar os últimos disparos. A área foi cercada, impedindo o acesso da família e da comunidade. A polícia alegou que Ruhan estava armado e envolvido com drogas, acusações que não foram comprovadas.

O assassinato de Ruhan gerou revolta. O Cajuru foi tomado por protestos que duraram três dias. Em uma tentativa de ressignificar a dor, sua mãe, que deveria estar celebrando sua formatura naquela semana, organizou, um mês depois, a 1ª Caminhada pela Paz, na Rua XV de Novembro. Desde então, ela se uniu a movimentos sociais, como a Associação Nascer, é articuladora da Rede Nenhuma Vida a Menos e foi presidente do núcleo periférico (no período de 2019 a  2023) em busca de justiça e reparação. Ruhan recebeu uma homenagem: seu nome foi dado a uma rua na mesma região onde foi morto.

Ruhan era inteligente e apaixonado pela família. Praticante de artes marciais, vivia dividido entre a  Educação Física e o Direito. Escolheu a segunda por acreditar que teria maior impacto social. Crescendo entre a casa da mãe e a do pai, no Cajuru, conhecia de perto histórias de prisões arbitrárias, sem provas, sem respeito, sem garantias legais, situações comuns nas comunidades periféricas. “Ô mãe, os moleques não aprendem o que ninguém ensina. Preconceito existe em todo lugar, e alguns deles não conseguem ver nenhum benefício no conhecimento”, dizia ele à mãe. 

O sonho dele era criar um coletivo. Ruhan e a família planejavam criar um espaço de educação básica voltado para preparar jovens do bairro para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA), que permite obter o diploma do ensino fundamental ou médio. A família acreditava que a educação podia ser um caminho de resgate. Ruhan tinha muito orgulho da mãe, que estava prestes a se formar, e também do padrasto, com quem convivia desde os quatro anos. Ambos foram aprovados no ENEM e conseguiram bolsas de estudo. No ano anterior, o padrasto conseguiu uma bolsa de 50% e se preparava para tentar uma de 100%. Ruhan via na superação da família um espelho e uma esperança.

Do luto à luta por justiça

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que, das mortes por intervenção policial registradas em 2022, 84,1% das vítimas eram negras. A maior parte delas era jovem, moradora de regiões periféricas e sem antecedentes criminais. Estas mortes, em sua maioria, não são investigadas de forma adequada e raramente resultam em responsabilização. “Eu percebi que não podia ficar parada. Conheci pessoas e movimentos que lutam por justiça e  reparações históricas. Para honrar meu filho e tantos outros, comecei a militar. Luto diariamente para que a justiça aconteça e para que todos os meninos possam viver em paz”, ressalta.

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A luta por justiça não é apenas pessoal, mas coletiva. Ao lado de outras mães e familiares, Suzete transformou o luto em resistência. Os movimentos sociais ajudam a dar voz a histórias que o Estado insiste em silenciar. “Não podemos normalizar a violência policial. Quando isso acontece, estamos aceitando a pena de morte nas periferias. Estamos dizendo que alguns corpos não têm direito à vida“, aponta

Apesar da acusação de homicídio e fraude processual, os policiais envolvidos seguem sem nenhuma punição. Enquanto isso, famílias como a de Ruhan seguem enfrentando o sistema, buscando justiça onde muitas vezes só encontram silêncio. As estatísticas crescem, e por trás de cada número há uma história interrompida, uma mãe em luto e um futuro arrancado à força.

O Caso de Johnatha, no Rio de Janeiro 

No Rio de Janeiro, outro nome grita por justiça há mais de 11 anos, Johnatha de Oliveira Lima. Ele era um menino negro, de muito amigos. A mãe Ana Paula Oliveira, guarda com o mesmo amor de quando ele chegou à sua vida de forma inesperada, aos 17 anos. “Hoje ele teria 30 anos”, diz Ana Paula.

Desde pequeno, Johnatha se destacava pela generosidade. Era ele quem chamava os amigos da comunidade para irem juntos ao zoológico e fazia questão de incluir aqueles que não tinham condições de pagar. ‘Na sua inocência, ele era sempre muito bom. Queria que todos pudessem ir, mesmo quem não tinha como’, relembra a mãe de Johnatha.

Os planos de futuro foram interrompidos em 14 de maio de 2014, quando Johnatha, aos 19 anos, foi atingido por um tiro nas costas, disparado por um soldado da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos. O acusado pelo crime é o policial militar Alessandro Marcelino de Souza, que ainda aguarda julgamento. O júri popular  está marcado para 2025, no 3º Tribunal do Júri da Capital, mais de 11 anos após o assassinato.      

Durante todos esses anos, Ana Paula transformou o luto em luta. Tornou-se uma das vozes mais potentes contra a impunidade policial e o extermínio da juventude negra nas favelas cariocas. “Meu filho foi morto com um tiro nas costas. E até hoje o assassino está solto. Se meu filho fosse branco, esse caso já teria sido resolvido. Eles veem nossos filhos como corpos matáveis , como se não importassem”, denuncia a ativista.

Ana Paula Oliveira é Mulher Negra, cria da favela de Manguinhos, Mãe de Johnatha de Oliveira Lima (vítima letal da violência policial no RJ), formada em Pedagogia, Ativista, Defensora de Direitos Humanos, cofundadora e coordenadora do movimento Mães de Manguinhos, Integrante do Fórum Social de Manguinhos. O seu grito inspira muitas Mulheres Negras a se levantaram contra o genocídio do povo negro nas favelas e periferias do Brasil.

Ela afirma que, embora saiba que a justiça plena talvez nunca aconteça, segue lutando por uma justiça de não repetição, para que outras mães não passem pelo que ela passou. “Precisei provar que meu filho foi vítima da polícia. Tive que fazer o papel da justiça, do luto, da memória. Isso me angustia, mas também me dá força. Não existe bala perdida. Existe uma política de extermínio. E enquanto eu viver, meu filho vai ter voz.”

Ana Paula criou o grupo Mães de Manguinhos, ao lado de Fátima Pinho, que também perdeu o filho assassinado por um agente do Estado. Juntas, passaram a acolher outras vítimas e cobrar respostas das autoridades.  O processo ainda está marcado por disputas jurídicas. Os recursos exigem a realização de um novo julgamento pelo Tribunal do Júri, com base nas provas periciais, reconhecendo que se trata de um homicídio doloso, ou seja, com intenção de matar. O policial inicialmente negou a autoria, mas, diante do resultado da balística, admitiu ser o autor do disparo, alegando não ter sido intencional.

A sentença de março deste ano classifica o crime como homicídio sem intenção de matar, mas Souza segue em liberdade e ainda sem pena fixada. Em casos como este, cabe à Justiça Militar decidir sobre a condenação, o que prolonga ainda mais a dor de Ana Paula e de todas as mães que buscam por justiça.

Ela comenta que segue lutando por uma justiça de não repetição para que outras mães não passem pelo que ela passou. “Precisei provar que meu filho foi vítima da polícia. Tive que fazer o papel da justiça, do luto, da memória. Isso me angustia, mas também me dá força. Não existe bala perdida. Existe uma política de extermínio. E enquanto eu viver, meu filho vai ter voz.”

Ana Paula é uma das principais vozes contra o genocídio negro no Brasil. Sua trajetória, que mistura dor, coragem e militância, inspira outras mulheres negras a romperem o silêncio e a transformarem o sofrimento em denúncia coletiva.

“Esses casos mostram como a violência vai se perpetuando. Por isso, é fundamental dar visibilidade a essas histórias, falar sobre quem esses jovens eram e oferecer acolhimento às famílias desses jovens negros e periféricos”, destaca Patricia Herman, integrante da página Rede Nenhuma Vida a Menos, criada por familiares e amigos de vítimas da violência policial,

A impunidade nos casos de violência policial análise dos crimes e do número de agentes punidos

Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata de estatísticas que comprovam que a cor da pele é um fator determinante para ceifar a vida de pessoas. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações. No próximo capítulo, haverá um levantamento detalhado sobre os perfis das vítimas de violência policial no Brasil. Também será abordada a impunidade nos casos de violência policial, com uma análise desses crimes.

Ficha técnica

Produção: Gabrieli Mendes

Edição e publicação: Fabrício Zvir, Gabriela Denkwiski, João Fogaça e Eduarda Gomes

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar

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