Sindicato, vereadores e comunidade defendem manutenção do serviço atual, enquanto prefeitura afirma que mudança moderniza logística e fiscalização. Foto: João Pedro Souza
A prefeitura de Ponta Grossa mantém projeto de terceirização da merenda escolar, mesmo após suspender o edital inicial e enfrentar protestos de servidores públicos. A primeira ordem previa gastos de R$ 96,5 milhões, mas a nova licitação, publicada em setembro, atualizou o valor para R$ 88,9 milhões. Paralelamente, a câmara municipal aprovou, em duas discussões, um substitutivo ao projeto de lei 301/2025. O texto original proibia a terceirização, mas a emenda de substituição permite que a medida siga adiante, assegurando que os salários de cozinheiros e auxiliares de cozinha não sejam reduzidos e que pelo menos 30% dos recursos destinados à merenda escolar sejam aplicados em compras diretas da agricultura familiar.
A proposta do projeto de lei prevê substituir 39 contratos atuais de fornecedores e prestadores de serviços por um único contrato com uma empresa privada, que passaria a assumir todo o processo: desde a compra dos alimentos e insumos até o pré-preparo, preparo e distribuição das refeições. Também ficariam sob responsabilidade da empresa a logística de entrega, a supervisão das atividades, a disponibilização da mão de obra necessária e a manutenção dos equipamentos e utensílios das cozinhas escolares. Atualmente, cerca de 90 mil refeições são fornecidas diariamente nas escolas e centros municipais de educação infantil (CMEIs) da cidade.
A prefeita, Elizabeth Schmidt (PSD), em vídeo no Instagram, nega que a mudança resulte na entrega de marmitas e garante que as refeições continuarão sendo preparadas com qualidade. Ela também assegura que as merendeiras permanecerão em seus empregos e terão ajudantes para reduzir a carga de trabalho. Para a prefeitura, a centralização facilitaria a fiscalização, já que haveria apenas um contrato a ser acompanhado, além de reduzir custos.
A secretária de Educação, Joana D’Arc, também em vídeo nas redes sociais, apresentou o projeto como um sistema de modernização da logística. Segundo ela, apenas uma empresa cuidaria de todo o processo, garantindo a qualidade dos alimentos. Já as merendeiras, nutricionistas e auxiliares de cozinha, permaneceriam nos mesmos cargos e locais, sem prejuízos.
Por sua vez, a secretária de Administração, Isabele Moro, afirmou em nota oficial que as merendeiras continuarão “desempenhando normalmente suas funções, em conjunto com as equipes terceirizadas já contratadas” e garante a continuidade da parceria com as cooperativas de agricultura familiar. Moro reforçou que a merenda já é terceirizada há anos.
O presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais (SindServ), Luiz Eduardo Pleis, alerta que, embora o município já tenha servidores terceirizados, eles frequentemente enfrentam problemas relacionados a salários e ao não cumprimento de direitos trabalhistas patronais (benefícios obrigatórios garantidos por lei aos trabalhadores).
Custos e contradições
Apesar das promessas de modernização, os números apresentados pela gestão geram desconfiança. Atualmente, segundo dados do SindServ apresentados em audiência pública, o município gasta cerca de R$ 57 milhões com merenda escolar e profissionais envolvidos. Já segundo a nota oficial da prefeitura, o valor previsto para custear a merenda em 2025 (incluindo contratos de fornecimento de gêneros alimentícios, gás, aquisição de equipamentos, equipes terceirizadas para cozinhas escolares, manutenção e folha de pagamento) é de mais de R$ 94 milhões.
Impactos para a agricultura familiar local
Agricultores e pequenos fornecedores podem ser prejudicados. De acordo com o Sindserv, atualmente, 71% dos contratos de alimentos da merenda são firmados com empresas do próprio município, movimentando a economia local. “Com a terceirização, eles não vão ter a obrigação de comprar da agricultura familiar, vão comprar em razão de lucro e preço. Quando se fala em preço, as pessoas compram os piores alimentos, porque não querem pagar por um alimento de qualidade, que é o alimento da agricultura familiar”, reforça Vania Mara Moreira, representante dos agricultores familiares.
Dolores Santana de Oliveira, produtora de orgânicos que fornece alimentos para a merenda desde 2010, está preocupada com sua fonte de renda e sustento da família. “Não tirem esse privilégio nosso, porque nós somos pequenos, não somos grandes produtores. Nosso pedacinho de chão é de onde a gente sobrevive”, desabafa.
Experiências passadas e riscos trabalhistas
O histórico recente da prefeitura também pesa contra a proposta. Em 2024, uma empresa terceirizada responsável pelo serviço de limpeza e apoio na alimentação deixou de pagar salários e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) de funcionárias, que precisaram recorrer à justiça para recuperar seus direitos. Para o SindServ, esse é um exemplo concreto de como a terceirização pode trazer precarização e insegurança trabalhista.
O sindicato teme que, sem concursos públicos, a terceirização se expanda até abranger toda a rede de merendeiras. Além disso, o edital inicial previa alterações no trabalho das servidoras, como a retirada da manipulação dos alimentos, função que seria transferida à empresa contratada.
Qualidade da merenda e vínculo humano
Outro ponto levantado é a qualidade nutricional e o vínculo afetivo. O projeto suspenso previa a criação de uma cozinha central para preparar mais de 30 mil refeições destinadas a mais de 170 unidades escolares. Segundo o sindicato, isso comprometeria a qualidade. “Acreditamos que a merenda não terá o mesmo padrão, pois nas escolas a alimentação é servida assim que finalizada”, explica Angélica Pozzebon, dirigente do SindServ.
O vínculo entre merendeiras e alunos também é considerado um diferencial. “Há muita rotatividade de terceirizadas nas escolas, o que impede a criação de laços. Não há garantia de que as merendeiras continuarão desempenhando suas funções como hoje”, completa a sindicalista.
Patrícia Almeida, merendeira e presidente do Conselho Municipal de Alimentação Escolar, relata que o órgão não foi consultado sobre a implementação do projeto. “Nós visitamos as escolas e sabemos a realidade. Não vemos necessidade de que haja essa mudança”, critica. A merendeira também alerta sobre a dificuldade de criar vínculos afetivos com os alunos, devido ao constante rodízio de terceirizados. “Quando é um concursado, ele acompanha a criança desde os primeiros até os últimos anos da educação fundamental”, explica. “A gente teme pela segurança alimentar e nutricional, que é construída pelas nutricionistas responsáveis”, complementa.
O impacto da terceirização também preocupa os pais. Matheus Artuzo, cuja filha estuda no CMEI Maria Conceição da Cunha, ressalta que a refeição escolar tem papel importante no aprendizado e no bem-estar das crianças. “Não faz sentido nenhum terceirizar o serviço, já que não reduzirá custos e a alimentação já é de qualidade”, afirma.

Terceirização da merenda preocupa não apenas merendeiras, mas também pais e fornecedores locais, que temem impacto na qualidade e na economia da cidade. Foto: João Pedro Souza
Transparência, questionamentos sem resposta e disputas na câmara
A condução do processo aumentou a desconfiança. O aviso do primeiro edital (nº 86/2025) foi publicado em 12 de agosto e cancelado três dias depois, sem explicações claras. A prefeitura chegou a mencionar um “vazamento” do documento antes de estar finalizado, termo incomum para um processo que deveria ser público.
A reportagem do Periódico enviou perguntas via e-mail à prefeitura no dia 27 de agosto, questionando a justificativa da mudança, os supostos “ajustes técnicos” que motivaram a suspensão do edital e como seriam preservados os empregos e a qualidade da merenda. Sem resposta, o e-mail foi reenviado em 1º de setembro. Até o fechamento da matéria, não houve retorno.
Apesar do silêncio diante das perguntas enviadas pela reportagem, no dia 19 de setembro, a administração municipal publicou no Portal da Transparência o novo edital de licitação da merenda escolar, no valor de R$ 88,9 milhões. A prefeitura afirma que o contrato permitirá ganhos de qualidade e eficiência, além de gerar uma economia anual estimada em até R$ 10 milhões.
No mesmo período, a gestão lançou também a campanha publicitária “Chega de mentiras. Merenda já é terceirizada!”, que apresenta detalhes dos contratos atuais, nomes de fornecedores e valores. A iniciativa, repercutida em panfletos, sites e redes sociais, buscava rebater informações e reforçar o argumento de que parte do serviço já é terceirizado há anos. Porém, dias depois, a Prefeitura retirou os anúncios.
Enquanto isso, em 22 de agosto, a câmara aprovou o substitutivo que autoriza a terceirização, garantindo a manutenção dos salários das merendeiras e a aplicação mínima de recursos na agricultura familiar. Para o SindServ, essa mudança representa risco de precarização do trabalho a médio e longo prazo. “As empresas visam lucro e, nesse tipo de processo, a prefeitura busca o menor preço, sem se preocupar com a qualidade ou outros aspectos de um serviço público realizado com responsabilidade”, ressalta Angélica Pozzebon.

Pais e servidores protestam contra a terceirização da merenda escolar na Câmara Municipal de Ponta Grossa. Foto: João Pedro Souza
Mobilização contínua
Merendeiras, pais e servidores ocuparam a câmara municipal e manifestaram em frente à prefeitura. No dia 20 de agosto, a sociedade civil protestou durante sessão na câmara e, em 1º de setembro, a comunidade participou de uma audiência pública sobre o tema. No dia 22 de setembro, os ponta-grossenses se manifestaram novamente na sessão de votação do substitutivo na câmara. Sem respostas concretas da prefeita, o sindicato não descarta ampliar a mobilização com paralisações e manifestações públicas, além de considerar ações judiciais. Segundo Pozzebon, o prejuízo pode ser grande não só para servidores e alunos, mas para toda a economia da cidade, que hoje se beneficia da compra direta da agricultura familiar e de fornecedores locais.
Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata da terceirização da merenda escolar na cidade. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.
Ficha técnica
Produção: Eduarda Gomes
Edição e publicação: Gabriele Proença, Mariana Krankel, Vinicius Orza e Isabele Machado
Supervisão de produção: Hendryo André
Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado
