Jornal curitibano “Gazeta Paranaense” (30/04/1889). Foto: Arquivo.
Corina Portugal tinha 20 anos na noite de 26 de abril de 1889, quando foi assassinada brutalmente com 32 facadas pelo marido, Alfredo Marques de Campos. O crime não foi repentino. Como em muitos casos, os sinais e avisos já se apresentavam há muito tempo. Alfredo era alcoólatra, com vícios em apostas e agredia fisicamente a esposa, enquanto Corina não possuía apoio social e familiar na cidade para conseguir sair daquela situação, além de sua forte religiosidade que condenava o divórcio. Contudo, o assassinato não foi o que marcou a vida e morte de Corina, e sim o que aconteceu após o crime.
Quatro dias após matar a esposa, Alfredo acusou o médico da família, João de Menezes Dória, que já havia tratado Corina das agressões físicas do marido, de cometer adultério com sua esposa durante os tratamentos médicos. O crime de adultério, disposto no artigo 250 do código criminal do Império – que mais tarde se tornou o artigo 240 do Código Penal de 7 de dezembro de 1940 – previa a prisão da mulher adúltera e estava ligado com as práticas históricas e culturais de “crimes de honra”, nas quais os homens matavam suas esposas em defesa da própria honra. Com a acusação de adultério, Alfredo foi absolvido do crime de assassinato, e Dória precisou fugir de Ponta Grossa para evitar o julgamento social.
Desde 2005, o crime de adultério foi retirado do código penal brasileiro e a violência resultante de infidelidade, como o assassinato, é punida como homicídio qualificado por motivo fútil. Mas mesmo com as mudanças nas leis, a história de Corina Portugal apresenta elementos que continuam presentes nos dias de hoje, mesmo tendo ocorrido há 136 anos. Como é o caso de Jaine Pereira Kochanski, assassinada pelo marido ano passado em Ponta Grossa, por uma suposta traição que o criminoso revelou em suas redes sociais horas após o crime. Assim como Corina, Jaine foi morta por facadas dentro de casa.
A psicóloga Beatriz Marchi Scussel explica o contexto da época de Corina. “Ela viveu em uma sociedade patriarcal e conservadora, em que a mulher era vista como submissa e dependente do marido”. Beatriz explica que o divórcio era algo inviável na época, principalmente pelo julgamento social do “pecado da separação”. Mas ao olhar para as repercussões do caso de Jaine, podemos ver que o julgamento social não foi combatido apenas com as mudanças nas leis.
“A lei do retorno, rápido e ligeiro”. “Descanse em paz, guerreiro, quem foi para o quinto do inferno foi ela”. “Deixou os filhos sem pais”. “Que história triste, realmente a traição é algo diabólico, ele trama tudo até acontecer o pior”. Estes são alguns dos comentários que uma matéria sobre o assassinato de Jaine recebeu no Instagram, produzida pela Rádio Itatiaia. “Traição é a própria morte”. “Mas só ele sabe o que passou na cabeça dele a decepção de ser traído, só ele sabe o sentimento que veio nele”. “Não julgo o cara”. Já esses são comentários do Instagram de outro canal de notícias, Portal 6, sobre o caso que mostram que o crime, para algumas pessoas, é aceitável diante da suposta traição da mulher.
A maneira que pensamos e o comportamento que temos são influenciados pela criação desde a infância, é o que garante a psicóloga Beatriz. “Se a criança cresce em um ambiente de violência contra as mulheres, ela tende a reproduzir este comportamento na vida adulta”, exemplifica. Ela afirma que o ciclo da violência é mantido por vários fatores que estão interligados, e por isso é tão difícil de quebrá-lo.
Hoje, as leis determinam que o caso de Corina Portugal não foi apenas um homicídio, mas um feminicídio, um crime de ódio motivado pelo gênero feminino da vítima. A lei foi criada em 2015 e a última alteração, que ocorreu em 2024, alterou a legislação e transformou o feminicídio em um crime autônomo, com pena aumentada de 20 a 40 anos de reclusão, além de estabelecer a perda do poder familiar e vedação para cargos públicos ao agressor condenado.
No Brasil, 2024 registrou um aumento de 0,7% dos casos e 19% nas tentativas de feminicídio. Os dados vêm do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado este ano. “Muitos profissionais relatam que os sinais de risco de feminicídio, como ameaças de morte, uso de armas, ciúme obsessivo, já estavam presentes antes”, lista a assistente social Eduarda Berbert. Foram 51.866 registros de violência psicológica no ano passado, número que também teve aumento, 6,3%. “O feminicídio é entendido como o ápice da violência doméstica e de gênero, quando todas as etapas anteriores de agressão, ameaça e controle não foram interrompidas”, explica Eduarda. A assistente social relata que a maioria dos crimes dessa característica acontece dentro de casa e ocorre principalmente entre casais com relacionamento romântico, mas também pode ocorrer entre a filha com os pais, outros membros da família e até entre amigos.
Mesmo com as mudanças nas leis, as violências contra as mulheres, pela condição de serem mulheres, continuam a acontecer. A história de Corina se repete a cada. “Mais do que a sociedade, o meio familiar em que Corina estava inserida teve grande relevância: um marido viciado em bebida, jogos e abusivo, e todos esses fatores ainda estão propensos a acontecer nos dias de hoje”, finaliza Beatriz.
Serviço
A Central de Atendimento à Mulher atende pelo número 180, oferecendo serviço gratuito e anônimo 24 horas por dia. “O papel do serviço social é fortalecer a autonomia da mulher, orientá-la sobre os recursos legais, oferecer acompanhamento psicossocial e lutar pelo funcionamento efetivo da rede de proteção”, recorda Eduarda. Em Ponta Grossa, além da Lei Maria da Penha, as mulheres podem pedir abrigamento, medidas protetivas e ajuda na Casa das Mulheres Vítimas de Violência Corina Portugal, pelo telefone 32201065.
Ficha técnica
Produção: Ester Roloff
Edição e publicação: Julia Almeida
Supervisão de produção: Hendryo Anderson André
Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado
