Adolescentes sem supervisão online enfrentam sedução da misoginia digital

Estudos indicam que a exposição precoce a conteúdos misóginos pode afetar o comportamento e as crenças dos jovens. |  Foto: Anna Perucelli

Quase metade dos adolescentes brasileiros entre 9 e 17 anos acessa a internet sem qualquer supervisão dos pais, de acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil. Entre os jovens de 15 a 17 anos, esse número sobe para 51%. O contato com o ambiente digital começa cada vez mais cedo: 24% das crianças brasileiras já haviam acessado a internet antes dos seis anos de idade. O que parece apenas um dado sobre conectividade revela algo mais profundo: a formação de uma geração vulnerável à cultura digital de ódio e ao discurso misógino que se espalha pelas redes.

Nos últimos anos, comunidades virtuais como red pill, incels e MGTOW (Men Going Their Own Way), em português “Homens seguindo seu próprio caminho”, ganharam força e visibilidade, se apresentando como espaços de apoio masculino, mas promovendo, na prática, a inferiorização e o ódio às mulheres. 

A comunidade red pill defende uma visão hierárquica entre os sexos, na qual os homens deveriam “despertar” para a suposta manipulação feminina e retomar o controle nas relações. 

Já os incels (celibatários involuntários) são formados majoritariamente por homens que culpam as mulheres por sua rejeição sexual, frequentemente expressando frustração com discursos misóginos e violentos. 

Por fim, os MGTOW pregam o afastamento total de relacionamentos com mulheres, alegando que seriam sempre prejudiciais aos homens, e promovem uma vida de isolamento como forma de “proteção” contra o que veem como um sistema feminizado e hostil. 

Apesar de diferenças em suas motivações e estratégias, essas comunidades compartilham uma retórica antifeminista e consolidam espaços digitais de radicalização misógina. As comunidades integram o que os pesquisadores chamam de “machosfera”, um ecossistema online que reproduz, reforça e radicaliza o sexismo. Estudo do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria com o Ministério das Mulheres, identificou a machosfera como um dos principais vetores da disseminação de estereótipos de gênero, discursos de ódio e violência simbólica.

A comunidade red pill é a mais numerosa dentro da machosfera. O nome vem do filme Matrix e se refere à “pílula vermelha”, que, no universo ficcional, revelaria a verdade oculta sobre o mundo. No contexto digital, essa “verdade” seria a suposta libertação masculina da opressão feminina e do feminismo. Os conteúdos red pill não apenas atacam o feminismo, mas também reforçam a inferiorização das mulheres por meio da objetificação, sexualização e desprezo intelectual. “Esses grupos oferecem explicações simples para frustrações complexas e atingem justamente quem está em formação emocional, como adolescentes entre 11 e 17 anos”, explica Eloni dos Santos Perin, professora e pesquisadora na área de Educação na Secretaria de Estado de Educação do Paraná. “Eles vendem a ideia de que o homem foi traído por uma sociedade feminista e que a solução é rejeitar a mulher e exaltá-lo como superior”.

A estética visual agressiva, a linguagem direta e emocional, os vídeos curtos, os memes, os gestos exagerados e até os áudios gerados por inteligência artificial são algumas das ferramentas usadas por esses grupos para capturar a atenção dos adolescentes. “O algoritmo colabora. Quanto mais radical o conteúdo, mais ele gera engajamento. Isso se converte em lucro para as plataformas e em prestígio para os produtores de conteúdo”, diz Eloni.

O conteúdo misógino, que antes circulava em fóruns fechados, agora aparece em perfis populares e vídeos com milhões de visualizações. Influenciadores que se declaram abertamente contra as mulheres são seguidos por meninos em processo de formação. A misoginia, muitas vezes, chega de forma sutil,  disfarçada de piada, conselho, provocação ou ideia de “masculinidade verdadeira”.

Para o especialista em cibersegurança Rafael Almeida, a popularização desses discursos está diretamente relacionada ao modo como as plataformas digitais operam. “As redes permitem e favorecem a propagação de conteúdo extremista. Os algoritmos são treinados para manter o usuário engajado pelo maior tempo possível, e discursos polarizados e violentos tendem a performar melhor nesse sistema”, explica. Segundo ele, o fato de adolescentes passarem horas conectados sem supervisão aumenta os riscos. “Eles acabam entrando em bolhas e são expostos repetidamente ao mesmo tipo de conteúdo, o que reforça crenças e normaliza comportamentos nocivos”.

O reflexo disso chega diretamente às escolas. “É ali que essas ideias ganham força: nas piadas, nas falas sobre ‘lugar de mulher’, na rejeição a professoras ou colegas meninas. A misoginia cotidiana está presente e precisa ser enfrentada. Ela não nasce nas redes, nasce na sociedade e ganha visibilidade online”, destaca a professora.

A estrutura dessas comunidades digitais reforça valores como o desprezo às emoções e a crença de que a rejeição amorosa é uma humilhação insuportável para os meninos. Frustrações afetivas são transformadas em ressentimento — e o ressentimento, em ódio.   

Outro agravante é a omissão das plataformas diante da disseminação desse tipo de conteúdo. No caso do Instagram, por exemplo, a empresa desativou ferramentas de checagem de fatos em determinados contextos, o que enfraqueceu os mecanismos de moderação e controle da desinformação. Essa medida foi amplamente criticada por especialistas por priorizar interesses comerciais, como o aumento do engajamento e da monetização, em detrimento da segurança dos usuários. Com menos filtros e fiscalização, torna-se mais fácil a propagação de conteúdos falsos, discursos de ódio e ataques direcionados, especialmente contra grupos vulneráveis, como as mulheres.

A misoginia digital é, também, um problema visual e semiótico. Ela aparece nas imagens, nos gestos, nas expressões corporais dos vídeos. E muitas vezes se normaliza na linguagem cotidiana. É essa naturalização que preocupa: a misoginia deixa de parecer uma violência e passa a parecer apenas “opinião”.

Para enfrentar esse cenário, Eloni defende um tripé de ação: legislações e políticas públicas que limitem o alcance desse conteúdo, responsabilização direta das plataformas e educação crítica desde cedo. “Os jovens precisam entender que isso é um problema social, não uma piada. Precisam aprender a identificar e questionar os conteúdos que consomem. O diálogo é o caminho.”

Enquanto comunidades como red pill continuam se apresentando como um abrigo para adolescentes inseguros e reforçando a misoginia como identidade e rebeldia, o desafio de protegê-los exige um esforço coletivo, urgente e profundo.

Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata da misoginia nas redes sociais. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.

 

Ficha técnica

Produção: Anna Perucelli

Edição e publicação: Isabela Machado e João Bobato

Supervisão de produção: Hendryo Anderson André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

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