A restrição do uso de celulares nas escolas surge como tentativa de frear esse processo, mas especialistas alertam que o desafio vai além da sala de aula. Foto: Julia Almeida
A infância, que deveria ser um período marcado pela imaginação, pela descoberta e por brincadeiras, tem sido cada vez mais encurtada. O fenômeno conhecido como adultização traduz essa realidade. Crianças e adolescentes passam a adotar comportamentos, responsabilidades e padrões de vida típicos do mundo adulto antes do tempo. Não se trata apenas de uma escolha individual, mas de uma pressão cultural, social e até comercial que empurra os pequenos para uma maturidade precoce forçada.
Esse processo ocorre de diferentes formas. Em alguns casos, é explícito, quando há incentivo direto para que a criança se comporte como alguém mais velho, seja pela cobrança de responsabilidades que não condizem com sua idade, seja pelo estímulo a padrões estéticos. Em outros, acontece de maneira indireta, através da exposição constante a conteúdos que antecipam etapas da vida. As redes sociais e os produtos destinados ao público infantil têm grande peso nisso, como bonecas que reproduzem corpos inalcançáveis e personagens sexualizadas em filmes e programas.
A neuropsicopedagoga Luana Bach observa que o impacto desse processo não se restringe à fase da infância. Segundo ela, ao assumir papéis que não correspondem à sua etapa de desenvolvimento, a criança carrega consequências que podem se prolongar pela vida adulta. “Essa criança leva para a fase adulta responsabilidades que não eram dela naquele momento e isso gera traumas que muitas vezes não são tratados”, afirma. A pressão estética e a erotização precoce são exemplos de fatores que deixam marcas emocionais profundas e contribuem para um quadro de ansiedade e insegurança.
Além dos efeitos psicológicos, a adultização também afeta a forma como as crianças lidam com o próprio corpo e com suas relações sociais. A ideia de estar sempre “pronto”, “perfeito” ou “adequado” ao olhar do outro as impede de viver experiências típicas da infância. A brincadeira espontânea, que deveria ser central no desenvolvimento, muitas vezes dá lugar à reprodução de comportamentos vistos em influenciadores digitais ou personagens midiáticos que reforçam a lógica do consumo e da centralidade da aparência.
E como a restrição dos celulares impacta esse fenômeno?
Nesse cenário, a discussão sobre o uso dos celulares em sala de aula ganha novo peso. A Lei 15.100, que restringe o aparelho dentro das escolas paranaenses, foi criada em resposta a preocupações ligadas à concentração, ao rendimento escolar e até ao cyberbullying. Mas, para especialistas, ela também pode abrir espaço para refletir sobre a adultização precoce. Isso porque os aparelhos funcionam como uma espécie de vitrine, que influencia ainda mais as crianças a consumirem esses tipos de conteúdos.
Para Luana, a medida pode contribuir, mas precisa ser entendida dentro de um contexto maior. “Dentro da sala de aula pode colaborar, sim, mas quando se proíbe demais, os adolescentes acabam procurando saídas em outros lugares. É preciso que haja parceria entre escola, família e sociedade para que o problema não apenas mude de espaço”, explica. Segundo ela, a proibição sem diálogo corre o risco de transformar o celular em objeto de desejo ainda maior, associado à ideia de liberdade absoluta.
A percepção de que o celular não pode ser tratado apenas como vilão também aparece no relato das famílias. Aline Gomes, mãe de Arthur, de 10 anos, reconhece que o filho faz uso diário do aparelho, mas sem grandes conflitos. “Ele utiliza algumas horas por dia. Quando é falado pra ele parar e fazer outra atividade, não tenho problemas, ele é muito tranquilo, não é uma dificuldade ficar sem”, relata. A rotina da criança inclui futebol, esportes diversos, brincadeiras ao ar livre e até momentos de leitura em família.
Aline avalia a lei como uma resposta dura, mas necessária, visto que se perdeu o controle em relação ao uso do celular. Para ela, a ausência de limites havia transformado o aparelho em protagonista da vida escolar, prejudicando as atividades do dia a dia. A mãe menciona existirem pesquisas que indicam efeitos positivos já observados em algumas instituições como mais leitura, maior engajamento em esportes e maior disposição para o convívio presencial.
Encontrar equilíbrio, no entanto, segue sendo o maior desafio. Para a mãe, o caminho deve seguir o diálogo constante. Ela acredita que é preciso mostrar às crianças que o aparelho é uma ferramenta indispensável, mas não deve ser a única fonte de lazer. “Não existe fórmula mágica, mas tentamos controlar dentro do possível porque o celular também oferece muito conhecimento”, explica. Em casa, esse equilíbrio é buscado com jogos de tabuleiro, momentos de leitura compartilhada e brincadeiras no parquinho próximo à residência.
Se, de um lado, a lei sinaliza uma tentativa de devolver à infância um espaço menos mediado pelas telas, de outro, especialistas e pais lembram que a responsabilidade não pode recair apenas sobre a escola. A adultização precoce é um fenômeno complexo, sustentado por fatores culturais e econômicos, e que exige um esforço coletivo. A restrição ao celular pode funcionar como um ponto de partida, mas só terá efeito duradouro se vier acompanhada de políticas públicas, apoio familiar e mudanças nas próprias referências que a sociedade oferece às crianças.
O debate em torno da infância e das telas revela uma disputa por tempo e experiências. Entre a pressa de crescer e a necessidade de preservar o direito de ser criança, estão os dilemas de uma geração que já nasce conectada. A pergunta que se impõe é até onde a sociedade está disposta a ir para proteger esse tempo que não volta.
Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo sobre a restrição dos celulares no ensino básico. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.
Ficha técnica
Produção: João Fogaça
Edição e publicação: Eduarda Gomes e Julia Almeida
Supervisão de produção: Hendryo André
Supervisão e publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado
