Bilhetes, animais e bilhões de reais: os bastidores do jogo do bicho

Tradição centenária sobrevive à repressão legal e se ajusta ao meio digital

Apesar de proibido no Brasil por decreto-lei n° 9.215, de 30 de abril de 1946, o jogo do bicho continua a operar. Criado em 1892 por João Batista Viana Drummond como uma forma de atrair novos públicos para o zoológico do Rio de Janeiro, o jogo tomou um caminho clandestino que movimenta a economia, desafia autoridades e consolida uma cultura popular que resiste ao tempo.

Hoje, bancas informais distribuem talões com os 25 animais e suas respectivas numerações. O jogo reúne apostadores de diferentes classes sociais que fazem apostas diárias baseadas em sonhos, superstições ou intuição. Apesar da ilegalidade, a presença dele é quase natural. Você pode estar na rua do seu bairro e escutar seu vizinho comentar “deu cobra na cabeça”, além de conferir os resultados em espaços públicos.

É comum ver menções ao jogo do bicho em músicas, novelas ou até mesmo em expressões do cotidiano. Nas comunidades, muitos veem como uma “instituição paralela”, confiável, direta e que paga melhor que o Estado. A prática se tornou popular. Mesmo com a proibição, em 1941, pelo decreto-lei n° 3.688, o jogo do bicho nunca deixou de existir. O Brasil é um dos poucos países que o jogo ilegal tem tamanha inserção cultural, com linguagem própria e simbologia.

De acordo com o Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL), a estimativa é que só em 2024 a arrecadação no jogo do bicho passou dos 10 bilhões de reais, distribuídos nos mais de 350 mil pontos de apostas informais espalhados pelo país, de bancas de camelôs a bares e mercearias. Por outro lado, a Caixa Econômica Federal, que promove jogos legais, por exemplo, tem pouco mais de 12 mil lotéricas licenciadas.

Apesar de ser um jogo simples, a estrutura é organizada: há apostadores que recebem as apostas e repassam aos gerentes das bancas, que se reportam aos banqueiros, os verdadeiros chefes do sistema. “Nossos lucros são altos, o que compensa os riscos, que por sua vez são baixos”, afirma Zé*, que prefere não se identificar.

Os sorteios costumam ser baseados nos resultados da Loteria Federal. O funcionamento continua semelhante desde a origem: o apostador escolhe um animal ou grupo de números e define o estilo de aposta (milhar, centena, dezena). Os nomes podem variar de acordo com a região onde se aposta: na cabeça, corrida, cheia, entre outros.

“Eu jogo desde moleque. É coisa da minha família. Nunca deixei de receber quando ganhei”, conta José. O apostador explica que mesmo ao conquistar bons resultados, já perdeu muito. “Na mesma intensidade que ganhei, cheguei a perder. Teve uma vez que perdi mais de mil reais. Passei dificuldades naquele mês”, afirma.

Diante da crescente pressão por regulamentação de jogos de azar no Brasil, o jogo do bicho voltou ao debate. Projetos em tramitação no Congresso Nacional propõem a criação do marco regulatório para cassinos, bingos, corridas de cavalo e claro, também para o jogo bicho.

A defesa argumenta que a nova legislação traria tributação e geração de novos empregos. Segundo o IJL, a formalização pode envolver mais de 450 mil trabalhadores diretos ou indiretos. Por outro lado, críticos alertam que a regulamentação beneficiaria banqueiros históricos e dificultaria o controle.

Com a popularização das apostas esportivas e jogos de azar online, o jogo do bicho perdeu parte de seu apelo entre os jovens. De acordo com reportagem do The Guardian, apenas 10% da receita gerada por essa economia vem do jogo do bicho; o restante migrou para apostas digitais, sejam elas legais ou ilegais.

“Meu marido perdeu toda nossa renda no Jogo do Tigrinho”, uma modalidade de jogos pela internet, desabafou Maria ao contar que seu esposo arriscou a renda semanal no aplicativo que se popularizou nos últimos anos. De acordo com ela, Zeca chegou a ganhar em alguns momentos, mas quando juntou a renda para aumentar os ganhos, perdeu tudo.

Ainda assim, com nomes aumento no consumo jogos onlines o jogo do bicho segue vivo. Alimentado por tradição, confiança popular e um sistema de contravenção enraizado, ele permanece como símbolo da dualidade brasileira: entre o legal e o ilegal, o folclórico e o criminoso.

*Nomes fictícios para não identificar as fontes.

Ficha técnica

Produção: Daniel Klemba

Edição e publicação: Gabriela Denkwiski e Rafaela Conrado 

Supervisão de produção: Carlos Alberto de Souza

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

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