Enquanto bebês reborn movimentam encontros e geram disputas legais por privilégios, mulheres reais enfrentam a clandestinidade e o risco de morte por decidirem sobre seus corpos. Foto: Fabricio Zvir
Quem olha de longe, observa pais e mães de todas as idades, uma comoção: todos carregando nos braços um bebê, enxovais, berços e brinquedos no parque. Contudo, em um lugar com tantos bebês, nenhum deles chora e não tem pulsação. Essa é a visão de quem andava no Parque Ibirapuera no dia 3 de maio deste ano, onde aconteceu um encontro de bebês reborn. De um lado, “mães” veem vida em quem não tem e, do outro, mães que lutam pelo direito de seu próprio corpo.
O reflexo da hipocrisia brasileira pode ser visto por diversas nuances. O valor de um bebê reborn pode ultrapassar facilmente a casa dos milhares de reais. Artigo de luxo, eles são bonecos feitos artesanalmente, cujo objetivo é se assemelhar ao máximo com a aparência humana real. As polêmicas que circulam esse consumo estão no modo de uso, muitos “pais” de bebês reborn usam a prática para fins terapêuticos e de processo de luto, além de, claro, a diversão. Em outro contexto, há casos extremos em que pessoas que têm o brinquedo se desconectam da realidade, confundindo o real e a imaginação como apontado pela psicóloga clínica, Adriana Dal Bosco. “Nestes casos, é aconselhável o auxílio psiquiátrico”, aponta.
Na Bahia, uma ‘mãe’ recorreu à justiça após seu empregador negar o pedido de licença-maternidade de seu bebê reborn. Ainda no estado, no município de Guanambi, uma jovem de 25 anos, levou sua boneca e teve atendimento negado em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Casos como estes viralizaram e a questão chegou aos Senado e às Câmaras Municipais. O Projeto de Lei (PL) 2320/2025, de autoria do deputado Dr. Zacharias Calil (UNIÃO) está em trâmite na Câmara dos Deputados, a proposta tem o objetivo de punir quem utilizar bonecas hiper-realistas para obter indevidamente benefícios destinados a crianças de colo, aplicando sanções administrativas e multas. A medida visa coibir fraudes e proteger a prioridade real das crianças nos serviços públicos e privados.
Enquanto isso, em outra esfera da sociedade, mães reais enfrentam obstáculos para garantir direitos básicos e, muitas vezes, são condenadas por tentar decidir sobre seu próprio corpo, ter ou não um filho. Em um país onde o aborto é cercado de estigmas e restrições, mulheres periféricas, negras e pobres sofrem as consequências mais severas da negligência estatal, como no caso na cidade de Chapecó (SC), em que uma mulher de 35 anos morreu após tentar realizar um aborto clandestinamente. “O aborto é um caso de saúde pública e a vida da mulher o que define é o dinheiro”, pondera Ligiane de Meira, 36, integrante do Coletivo Feminismos em Luta.

Crédito: Fabricio Zvir
Dois panoramas distintos que revelam o classicismo em nosso país: de um lado, o privilégio de tratar uma boneca como um bebê real; do outro, a luta por reconhecimento e dignidade na maternidade concreta. Confira o relato da mãe real, Ana Alice (Nome Fictício), e a realidade de uma maternidade precoce e a relação com o aborto.
Relato
Eu tinha 14 anos. Não era mulher, tampouco criança. Estava no início da adolescência, cheia de sonhos e planos. Foi nesse período que me deparei com um teste de gravidez positivo. Minha primeira reação não foi dúvida, nem alegria: foi medo. “Eu só pensava em tirar. Era impossível ser mãe naquela idade.”
O aborto apareceu na minha vida como a única saída possível. Não tinha espaço para romantismo, só desespero. O apoio familiar naquele momento não era algo concreto e com muito medo, comecei a procurar alternativas clandestinas. Para mim era o único caminho viável para uma adolescente como eu.
Meu namorado na época, foi quem começou a correr atrás de uma solução. Diferente de muitos casos que a gente ouve por aí, ele me apoiou em qualquer decisão. Foi ele quem conseguiu, através de uma amiga farmacêutica, o contato de um médico que tinha uma clínica clandestina numa cidade vizinha. O procedimento seria feito em segredo dos meus pais. Quando ele me perguntou se eu queria mesmo tirar, eu não hesitei: disse que sim.
Meu medo mais forte não era o julgamento moral, mas o risco de morrer. Cogitei tomar Cytotec, sabia que era perigoso. Eu iria ter a chance de fazer em uma clínica clandestina, mesmo assim eu sabia que não seria 100% seguro. Você literalmente vai pra casa de alguém que você nunca viu na vida, numa cidade que não é sua, e só torce pra sair de lá sem sequelas.Além do risco físico, tinha o medo legal.
Se algo desse errado e eu precisasse de atendimento médico, eu podia ser denunciada. Mas o tempo, meu corpo e a desconfiança da minha mãe foram mais rápidos que o procedimento. Ela começou a perceber os sinais. Em um certo dia, me fez fazer um teste na frente dela. Eu já sabia o resultado, mas ainda assim chorei como se fosse a primeira vez vendo aquele positivo.
Achei que seria o fim: gritos, castigos, rejeição. Mas veio algo inesperado: apoio. Minha mãe surtou no começo, mas depois voltou ao meu quarto e disse que ia ficar tudo bem. Meu pai, de quem eu mais temia a reação, foi quem mais me acolheu. Sentou do meu lado e disse que eu não precisava desistir de nada, que não queria que eu parasse de estudar nem casasse, que eu tinha pai, tinha mãe e que não estaria sozinha.
Esse apoio mudou tudo. Aos poucos, fui aceitando a gravidez e comecei a construir uma nova visão sobre aquilo que antes parecia o fim da minha história. Meus amigos, professores e até a diretora da escola também me acolheram. Com essa rede, fui encontrando forças para seguir em frente. Não foi fácil, mas já não era impossível. Entre o medo e o acolhimento, eu escolhi continuar.
Se eu engravidasse hoje, com a cabeça que tenho agora, eu tiraria. Porque hoje eu sei o que significa ser mãe. E sei também o que significa não estar pronta. A minha história é só uma entre tantas. É a história de uma menina forçada a virar adulta. Mas, acima de tudo, é sobre o direito de não ser mãe.
Fim do relato
A partir dali, a história seguiu um outro rumo. Mas a escolha pelo aborto deixou marcas e um entendimento profundo sobre como o sistema brasileiro obriga meninas a tomarem decisões impossíveis, muitas vezes em silêncio e com o medo.
Esta reportagem é uma análise social de pautas da maternidade brasileira e faz parte de uma série que está sendo produzida para a matéria de Produção e Edição de Textos Jornalísticos III. No próximo capítulo, vamos abordar o aborto na história da sociedade e conhecer o relato de Sandra (Nome Fictício).
Ficha técnica
Texto: Fabricio Zvir
Edição e publicação: Sabrina Waselcoski
Supervisão de produção: Hendryo André
Supervisão da publicação: Aline Rosso e Kevin Furtado
