Caso Luciane de Ávila: crime revela face da misoginia em Ponta Grossa

Luciane tinha três filhos, dois menores de idade, na época. Foto: arquivo pessoal.

Mesmo após 10° ano da Lei do Feminicídio, Paraná é o segundo estado que mais matou mulheres em 2024

Em Ponta Grossa, a Casa da Mulher se transformou na Casa da Mulher Brasileira, em novembro de 2024, e leva o nome de uma mulher que foi brutalmente assassinada na frente do filho de oito anos na época. Luciane Aparecida de Ávila era mãe de três filhos e professora em uma escola infantil, local onde foi morta. Cinco anos se passaram desde que a “Prof. Lu”  conhecida carinhosamente pelos  alunos e colegas de trabalho perdeu a vida para a misoginia. Mesmo com a dor, Lucas Cedric de Ávila, filho mais velho de Luciane, hoje com 30 anos e com a guarda dos dois irmãos mais novos, não se cala. O luto virou uma batalha, por justiça, pela memória e por mudança.

“Minha mãe sempre priorizou os filhos. Suportou muita coisa por nós”, afirma Lucas, sobre os anos de abusos psicológicos e físicos que a mãe dele sofreu em silêncio. “Ela era tensa o tempo todo, evitava situações que pudessem causar ciúmes ou ataques dele. Até reuniões na igreja tornavam-se motivo de briga”, relembra. 

Luciane tentou sair da situação em que estava. Em 2019, viu o filho do meio, na época com 15 anos, sofrer com a gravidade da agressão que ela sentia a via sentir na pele. “Foi quando meu irmão começou a se automutilar cortar. Ela viu que aquilo estava afetando diretamente a saúde dos filhos. Então, tomou coragem e saiu de casa”, comenta o Lucas. Porém, mesmo separados, o agressor passou a usar os filhos para atingir Luciane. Escondeu o cachorro da família e os ameaçava constantemente. “Era tudo premeditado. Ele fingiu tentativa de suicídio, buscou atendimento psicológico, tudo para construir uma narrativa de insanidade”, diz Lucas.

No momento do homicídio, “mesmo ferida, ela tentou proteger uma aluna. Esse era o jeito dela. Até no último segundo, pensou nos outros”, comenta Lucas. A comoção pelo caso levou a criação do Dia Municipal de Combate ao Feminicídio, no dia quatro de dezembro, data da morte da Prof Lu. 

A Lei 13.104/2015,  tipifica o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, completou 10 anos. No entanto, como alerta a advogada e militante feminista Luana Ganio reforça que a lei é punitiva, mas não preventiva. Ela reconhece o assassinato de mulheres como uma questão de gênero, “o que é fundamental, mas chega tarde demais para quem precisa de proteção antes”, declara. Luana atua na coordenação do Movimento de Mulheres Olga Benário e na Rede de Enfrentamento à violência Ana Paula Campestrini e afirma que a maior falha da Lei é não oferecer formas de sair do ciclo da violência. “A mulher que quer sair, mas muitas vezes não tem para onde ir. A Casa da Mulher Brasileira é um avanço, mas ainda é insuficiente”, acrescenta. 

Lucas conta como foi criar os irmãos sozinho com a esposa após o falecimento da mãe: “Foi difícil conquistar a confiança deles. Eu era o novo homem da casa, e a única referência que eles tinham era de alguém que matou a própria esposa”, lamenta. Lucas  aprendeu com a dor e emocionado diz que o silêncio não é a melhor resposta para o sofrimento do outro. “Falar, intervir, denunciar. Nós    achamos que não é da nossa conta. Mas pode ser sua mãe, sua irmã, sua vizinha. Quando apareceu o rosto da minha mãe no jornal, eu entendi: isso pode acontecer com qualquer uma”, afirma.

Feminicídio no Paraná

O que sobra depois dos gritos silenciados de uma mulher que perde a vida apenas por ser mulher? O luto é constante. Desde 2015, ano de criação da Lei de Feminicídio no Brasil, a conhecida Lei 13.104/2015. Mesmo após uma lei nomeada com o crime, os dados são cada vez mais alarmantes. Em 2025, a Lei completa uma década, porém, não é motivo de comemoração: no Paraná, apenas entre 2023 e 2024, foram registrados 724 casos de feminicídio consumado ou tentado. O estado garante o segundo lugar no índice brasileiro e fica atrás apenas de São Paulo, com 994 casos; esses dados são apresentados pela Lesfem – um relatório de dados sobre feminicídios consumados e tentados no Paraná; nos anos de 2023 e 2024, foram produzidos pelo Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB), e são uma iniciativa do Laboratório de Estudos de Feminicídios da Universidade Estadual de Londrina (Lesfem/UEL). Pesquisadoras do Lesfem afirmam que o aumento nos registros se deve, em parte, à redução da subnotificação, mas também reflete a intensificação da violência contra meninas e mulheres. A Lesfem analisou que em metade das cidades paranaenses, ao menos uma mulher foi atacada; e em 263 desses casos, o grito não foi suficiente para impedir o assassinato dessas mulheres.

Crédito: Rafaela Conrado

Segundo o MFB, Ponta Grossa contabiliza 28 casos e fica entre as três cidades com mais ocorrências no Paraná, atrás de Curitiba (72) e Cascavel (30). Desses casos, 45% das vezes o assassino foi o companheiro atual da mulher que tirou-lhe a vida. Os dados apontam que 30% dos ex-companheiros cometeram o crime contra a vida da mulher. 

Com base nos mesmos dados, em 60% desses casos, o crime foi cometido dentro da casa da vítima, ou seja, no espaço que deveria haver proteção. Entre 2023 e 2024, mais de 120 familiares foram testemunha desse tipo de homicídio, destes, 32 mulheres haviam pedido ajuda antes da fatalidade acontecer. 

Para diminuir os casos ou ao menos conter os agressores, o Estado decide agir. Assim, foram criadas delegacias especializadas para mulheres, campanhas de conscientização e investimentos na segurança. Além disso, o Supremo Tribunal Federal declarou ser inconstitucional a “defesa da honra”. O “Pacote Anti feminicídio” foi sancionado em 2024. Agora o crime é autônomo, com penas de 20 a 40 anos de prisão e até 60 anos em caso de agravantes. A Lei Maria da Penha também foi alterada, o descumprimento da medida protetiva pode ir além da multa e chegar a cinco anos de prisão – uma vitória, mas não o suficiente para impedir que mulheres sejam mortas. Quantas leis são necessárias até que nenhuma mulher precise morrer para ser ouvida?

O MFB acrescentou ainda as armas utilizadas para acabar com as vidas das mulheres. Em 18% dos casos, foram utilizadas armas de fogo e 53% envolveram armas brancas. Há algo que vai além da constituição: crianças e adolescentes são afetados diariamente e tornam-se vítimas indiretas desse tipo de assassinato, a violência também é contra a família. 

O cenário nacional não é diferente do Paraná. De acordo com o Ministério da Justiça, o Brasil registrou, apenas em 2024, 1.459 casos de feminicídio, o maior número desde a criação da Lei de Feminicídio. Desde 2015, mais de 11,8 mil mulheres foram assassinadas. 

Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata do feminicídio no Paraná e do caso de Luciane de Ávila em Ponta Grossa. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.

Ficha técnica

Produção: Daphinne Urtado

Edição e publicação: Larissa Oliveira, Gabriela Denkwiski e Ester Roloff

Supervisão de produção: Hendryo Anderson André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Furtado

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