Cura e fé: a cultura do benzimento em Ponta Grossa

“Há nove anos, éramos em 18 na cidade, hoje muitas já se foram” diz a benzedeira Célia Aparecida Mance | Foto: Maria Cecília Mascarenhas

A busca pela cura espiritual ou física, é a marca registrada da prática do benzimento, algo muito comum entre pessoas religiosas. Essa tradição teve início ainda na Idade Média, no continente Europeu. No Brasil, de acordo com a pesquisa, “Desfazendo o “Mau-olhado”: Magia, Saúde e Desenvolvimento no Ofício das Benzedeiras”, desenvolveu-se a partir do século XVII, e tornou-se uma cultura extremamente enraizada no país.  O uso de terços, ervas medicinais, velas, ceras, imagens de santos e outros objetos simbólicos estabelecem ligação entre a pessoa que benze e que procura o atendimento para se curar.

O benzimento serve para alguns tipos de enfermidades, e possuem até mesmo um vocabulário específico, como: lombrigas, bichas, quebrantes e cobreiros. Termos que são manifestados com frequência por aqueles que entendem dessa cultura.

O conhecimento das benzedeiras é passado de geração em geração na família ou para aqueles que têm o dom da cura. Essas pessoas unem os saberes da ancestralidade com o conhecimento popular e o colocam em prática no cotidiano com a finalidade de ajudar aqueles que necessitam.

O conhecimento passado de mãe para filha com o objetivo de curar pessoas. | Foto: Maria Cecília Mascarenhas

Aos quinze anos, dona Apolônia Lesniak Mance iniciou a carreira como benzedeira. Com ensinamentos passados de mãe para filha, essa cultura está na família Mance há quatro gerações. Hoje, aos 86 anos de idade, ela relata o orgulho de ter aprendido sobre o benzimento com a mãe e ensinado a filha, assim mantém vivo os saberes de seus antepassados. Aos 71 anos na atividade, ela relata a sua história: “na minha família, a minha bisavó já benzia. E eu tinha oito anos quando comecei a querer benzer, porque me criei no benzimento”. Ela chama a atenção para a importância da empatia em relação ao próximo nos benzimentos. “Eu sempre quis fazer o bem para os outros. Nascemos com essa vocação”, afirma Apolônia.

A também benzedeira, Flavia Fernandes trabalha com o benzimento há cerca de quarenta anos. Carregando esse aprendizado de geração em geração, ela aprendeu sobre essa cultura com sua avó. Flavia pontua que costuma realizar muitos benzimentos na área amorosa, da saúde e de diversos tipos de problemas. E destaca que  “o benzimento  elimina tudo de ruim que está acontecendo na vida das pessoas, evita olho gordo, inveja, mal olhado e todas as coisas ruins”.

A diminuição da cultura do benzimento na atualidade

Por se tratar de uma tradição, o benzimento é uma forma de cura que tem diminuído o número de pessoas para praticá-lo. Em 2016, a Fundação Municipal de Cultura de Ponta Grossa realizou o projeto Benzedeiras de Ponta Grossa, que tinha o objetivo de registrar, mapear e valorizar culturalmente as profissionais da cidade. O projeto chegou a registrar dezoito mulheres que trabalhavam com a cultura do benzimento, espalhadas em diferentes regiões do município. Hoje, nove anos depois dessa pesquisa, muitas delas já não trabalham mais na área em razão da idade, problemas de saúde e até falecimentos.

Célia Aparecida Mance aprendeu o benzer com a mãe Apolônia. “Minha mãe diz que quando eu era criança eu já demonstrava interesse em aprender sobre o benzimento. Com o passar dos anos, fui vendo ela trabalhar e passei a aprender só de assistir. Mas para isso não é necessário só querer aprender, benzer é um dom do Espírito Santo” descreve.

As benzedeiras Célia e Apolônia atendem cerca de sessenta pessoas por dia. Célia comenta que o número de atendimentos cresceu muito nos últimos anos, devido à falta de pessoas que realizam benzeduras. Hoje em dia é escasso o número de profissionais. “Eu, inclusive,  atendo pessoas que vêm de outras cidades para se benzer. Não se encontram mais benzedeiras nem no interior do estado”, relata.

As dificuldades enfrentadas pelas benzedeiras

Além da sobrecarga de trabalho, resultado da redução de pessoas que ainda realizam a prática, as duas benzedeiras de Ponta Grossa comentam  que é necessário estar disposta a trabalhar na hora que for preciso para atender aqueles que estão necessitados. Celia relata que na madrugada  da última Páscoa, ela teve que atender uma criança portadora de “bichas”, como é popularmente conhecida as doenças relacionadas a parasitoses intestinais.

Pessoas que enfrentam problemas psicológicos, físicos e espirituais, podem recorrer às benzedeiras, profissão que exige muito da energia pessoal para a cura do próximo. “Perdemos muita energia e se pegarmos todas as dores dos outros para nós, no outro dia não conseguimos nem levantar da cama” aponta Célia. Apolônia relata a importância de se preparar para os atendimentos:“ Nós devemosestar prontas, fazer muita oração, tomar banho de descarrego e fortalecer, principalmente, o espiritual”, afirma.

Perguntada sobre a percepção da sociedade em relação a cultura do benzimento, Célia afirma quemelhorou, mas ainda existe muito preconceito. “Se fosse antigamente, eu e minha mãe morreríamos queimadas no fogo, seríamos consideradas bruxas. E questiona: quantas benzedeiras e curandeiras não foram queimadas porque o povo não acreditava no seu dom?”. Ela salienta que muitas pessoas, ainda, agem com ironia, desrespeito e preconceito em relação ao trabalho de cura que realiza na cidade.

O benzimento e a ciência

O benzimento é uma forma de manifestação de fé das pessoas que acontece por meio de ritos e orações. No entanto, essa alternativa para a cura de certas doenças do corpo e da alma não deve substituir os tratamentos tradicionais da ciência e da medicina. Por fazer parte de sua cultura e das tradições locais, a cidade de Rebouças (PR) reconheceu as benzedeiras como profissionais há cerca de 15 anos. A Lei n°1.401, aprovada em 2010, conhecida como “Lei das Benzedeiras” também institucionalizou os trabalhadores de curadoras (es), costureiras (os) de rendiduras (musculares) ou machucaduras. Além de regulamentar o livre acesso à coleta de plantas medicinais nativas do município. A enfermeira e secretária de saúde do município, Anaiara Adamante Cipriano, explica que a lei funciona como uma forma de reconhecimento do trabalho das benzedeiras, assegurando a elas o direito de exercer a atividade e repassar seus conhecimentos. “A lei dá uma autenticidade para elas e para que busquem alguém que continue o ensinamento, que geralmente é alguém da própria família ou da comunidade”, diz.

“A cera de abelha vêm para puxar tudo de ruim que está acontecendo na vida da pessoa”, relata a benzedeira em relação ao instrumento de benzimento. | Foto: Maria Cecília Mascarenhas.

A cultura da benzedura é forte, de acordo com a secretaria. Ela pontua que há pessoas que não acreditam no que os médicos das unidades de saúde dizem e buscam o atendimento por meio da fé. A partir disso, ela também afirma que é necessário informar para a população questões referentes aos cuidados clínicos e a importância dos medicamentos ou vacinas. “É preciso desmistificar as notícias falsas e falar sobre imunização, consultas e protocolos, mas sem colocar em descrédito o que as benzedeiras fazem”, relata a secretária.

Benefícios da cultura do benzimento 

Indianara Aparecida de Aguiar conta que sempre levou o filho para benzê-lo e acredita nos efeitos positivos do benzimento para problemas  físicos, psicológicos e espirituais. Ela expressa preocupação com a diminuição do número de benzedeiras, e afirma que  a cultura do benzimento é muito importante. “O que me preocupa muito é que o benzimento está desaparecendo. Hoje as pessoas precisam procurar muito por este tipo de atendimento, porque as benzedeiras estão falecendo e esse tipo de serviço está ficando cada vez mais escasso”, diz Indianara

Sobre a sua vocação para o benzimento, Célia explica, “não somos nós que vamos curar. Nós temos o dom de cura pelas mãos, mas o que cura as pessoas é a própria fé delas”. Célia relata que é gratificante exercer o benzimento e fazer bem ao próximo.

Ficha técnica

Produção: Fernanda de Matos Maria Cecília Mascarenhas

Edição e publicação: Anna Perucelli, Fabrício Zvir, Gabriele Proença e Isabele Machado

Supervisão de produção: Carlos Alberto de Souza

Supervisão e publicação: Aline Rosso e Kevin Furtado

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