Dentro da toca dos incels: como funcionam os grupos misóginos que transformam frustração em ódio

Grupos moldam pensamentos e dificultam buscas por ajuda

“Eu acreditava, de verdade, que ninguém nunca ia me amar. E que a culpa era das mulheres”. É assim que começa o relato de Paulo, 21 anos, que por quase dois anos esteve mergulhado em uma das comunidades mais tóxicas da internet: os incels, abreviação de involuntary celibates, ou celibatários involuntários, um submundo virtual onde homens se reúnem para transformar inseguranças e frustrações pessoais em ódio contra as mulheres.

O que começou como busca por acolhimento virou combustível para um ciclo de autodepreciação, ressentimento e discursos misóginos. E Paulo não foi o único. Na verdade, são milhares de jovens que, todos os dias, cruzam os portões desses grupos digitais e, muitas vezes, não conseguem mais sair. Um estudo da organização Center for Countering Digital Hate (CCDH), de 2022, revelou que os maiores fóruns incels somam, juntos, mais de 1,2 milhão de membros ativos, com uma média de 2,6 milhões de acessos mensais.

Ainda segundo a pesquisa, nesses espaços, há em média um post misógino a cada 30 segundos. Mais grave: cerca de 89% dos usuários já discutiram temas ligados a violência, incluindo assassinatos, estupro ou suicídio.

O ponto de partida, segundo Paulo, foi a solidão. Aos 18 anos, recém-saído do ensino médio, ele se via isolado. “Via meus colegas namorando, saindo, se divertindo. E eu, nada. Eu me sentia invisível”, conta.

Procurando respostas no YouTube, ele começou assistindo vídeos sobre “como ser mais confiante” e “como conquistar garotas”, mas o algoritmo logo o levou para outro caminho: vídeos que falavam de “hipergamia feminina”, a suposta tendência das mulheres a escolher apenas os homens de maior status ou beleza. Curioso, Paulo clicou em um link na descrição de um vídeo que o levou a um fórum. Foi ali que conheceu o universo dos incels.

 

Fóruns incels ensinam que o sofrimento pessoal é culpa das mulheres, criando um ciclo de ressentimento.       Arte: Anna Perucelli

 

Como funcionam esses grupos?

Os fóruns incels têm estruturas bem definidas, explica Paulo. Há tópicos fixos com “lições” sobre beleza facial, padrões estéticos, hierarquias sociais e, sobretudo, teorias sobre como a sociedade estaria organizada para beneficiar as mulheres e punir homens como eles. “Lá eles te dizem que, se você não nasceu bonito, alto, musculoso, você está fadado a ser rejeitado. E que isso nunca vai mudar, não importa o que você faça”, relata. “E o mais pesado é que eles culpam diretamente as mulheres. Dizem que elas são frias, interesseiras, cruéis. Você começa a acreditar”, completa.

A entrada nos grupos geralmente é feita por convites escondidos em links, comentários ou descrições de vídeos e posts. Há subfóruns para diferentes temas: desabafos, memes, teorias, suicídio e até discussões sobre violência, frequentemente moderado para não chamar atenção das plataformas, mas que ainda circula em espaços privados como grupos no Discord e canais no Telegram.

 

Da frustração à radicalização

A psicóloga Amanda Soares, especialista em comportamento digital e violência de gênero, explica que esses grupos operam de maneira muito semelhante a seitas. “Eles oferecem uma explicação simples para uma dor muito complexa: a solidão, a rejeição, a baixa autoestima. Em vez de ajudar essas pessoas a entenderem suas dificuldades, eles dizem que o problema está no outro, nas mulheres, nos homens bem-sucedidos, na sociedade”, diz.

Segundo Amanda, o ciclo é previsível: primeiro, o jovem encontra acolhimento, sente-se ouvido. Depois, é bombardeado por conteúdos que reforçam sua visão negativa de si mesmo e do mundo. Por fim, é levado a acreditar que não há saída a não ser aceitar o ódio ou, em casos extremos, a própria morte. “O que esses espaços fazem é uma lavagem emocional. Eles reforçam a impotência, invalidam qualquer possibilidade de mudança e criam um ambiente onde o discurso misógino é não só aceito, mas celebrado”.

 

 As regras não escritas do submundo incel

Dentro dos fóruns, existem códigos e regras não declaradas. Linguagem própria: termos como chad (homem alfa), stacy (mulher atraente), blackpill (aceitação do destino trágico) e looksmaxxing (melhorias na aparência, como cirurgia plástica ou uso de anabolizantes) são onipresentes. Hierarquia baseada no desespero: quanto mais alguém demonstra pessimismo, niilismo ou ódio, mais respeito conquista no grupo. Censura interna: qualquer tentativa de discutir alternativas saudáveis, como terapia ou desenvolvimento pessoal, é tratada como cope (autoengano) e ridicularizada. Conteúdo reciclado: memes, gráficos falsos e supostas “provas científicas” que reforçam o discurso de que mulheres só se interessam por homens de beleza extrema ou status econômico.

 

O que o ódio alimenta

Paulo admite que chegou perto do abismo. Não foi de uma hora para outra. A sensação de inadequação foi se acumulando em silêncios, olhares desviados e  rejeições mal digeridas. “Eu comecei a pensar que não fazia sentido viver assim”, conta. “E, sim, passei a achar que elas, as mulheres, eram as culpadas”.

O que começou como uma frustração contida logo se transformou em raiva. Isolado no quarto, passava horas consumindo vídeos e fóruns em quem que outros homens repetiam aquilo que ele sentia, com palavras mais afiadas, mais cruéis. A raiva ganhou corpo, e com ela vieram os comentários misóginos, a agressividade velada que , por vezes, não era tão escondida assim. Por fim, a distância cada vez maior entre ele e o mundo. Amigos se afastaram. A mãe, preocupada, passou a bater à porta com mais frequência. Um tio, com quem ele costumava conversar sobre futebol, parou de aparecer. “Eu estava me tornando alguém que eu mesmo não reconhecia mais”, confessa  Paulo.

O ponto de virada veio depois de uma discussão intensa com a irmã. Foi a primeira vez que ela chorou na frente dele. “Ela disse que tinha medo de mim. Aquilo me destruiu por dentro”, desabafa. No dia seguinte, com a ajuda da mãe, Paulo agendou a primeira sessão de terapia. O atendimento foi feito em um centro comunitário da cidade, onde ele encontrou um espaço de escuta segura. Um  lugar em que, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que podia ser vulnerável.

“Foi aí então que eu procurei ajuda. Comecei a frequentar a terapia”, relembra. No começo, o desconforto era quase insuportável. Havia medo de ser julgado, vergonha do que pensava, dificuldade em encontrar palavras. Mas, com o tempo, Paulo passou a se abrir. O processo foi conduzido com base em exercícios de autoconhecimento e reestruturação de pensamentos, algo comum na abordagem cognitivo-comportamental.“A cada sessão, eu começava a perceber padrões no meu jeito de pensar. Eu generalizava tudo. Se uma mulher me rejeitava, eu achava que todas fariam o mesmo. Se alguém não gostava de mim, eu concluía que ninguém nunca ia gostar. E aí eu comecei a perceber o quanto isso era injusto — com elas, e comigo também”.

Um dos momentos mais marcantes para ele foi escrever uma carta para si mesmo, como se estivesse falando com um amigo querido. “Eu nunca tinha falado comigo com gentileza. Foi ali que comecei a entender o quanto eu me machucava..

A terapia também o ajudou a encarar com mais consciência o conteúdo que consumia online. Em vez de apenas desligar os vídeos e fingir que não existiam, passou a analisá-los, a identificar padrões de manipulação, distorções e discursos de ódio disfarçados de conselhos. “Com o tempo eu percebi que estava afastando pessoas que me amavam e que as coisas só pioraram quando eu consumia esse tipo de conteúdo”, desabafa.

Hoje, Paulo ainda faz acompanhamento, mas já reconstruiu muito do que havia perdido. “Foi um processo muito difícil, mas necessário. A cada encontro com a terapeuta, eu desmontava um pouco daquela armadura que me fazia acreditar que sentir era sinal de fraqueza”. Ele completa: “eu percebo o quão errado esses tipos de pensamentos são. E mais do que isso: entendo de onde eles vêm. Foi preciso reaprender a me olhar com mais honestidade para conseguir mudar”.

Termos como chad, stacy e blackpill ajudam a reforçar estereótipos e hierarquias tóxicas entre os membros.      Foto: Anna Perucelli

 

Um problema que não fica só na internet

A psicóloga Amanda alerta que os impactos desse tipo de radicalização não ficam restritos ao mundo virtual. “Quando você tem milhares de jovens cultivando ódio diariamente, você tem um problema de saúde pública. Porque esse discurso não se limita à tela. Ele molda como eles se relacionam na escola, no trabalho, nas famílias e, em casos extremos, leva à violência física.” Ela explica que, para muitos, esses grupos são a porta de entrada para outros ambientes extremistas, como movimentos masculinistas, antifeministas e até discursos supremacistas.

Não são poucos os casos em que a ideologia incel ultrapassou a barreira do online e virou tragédia no mundo real. Segundo dados da Polícia Montada do Canadá, desde 2014, pelo menos cinco atentados foram diretamente ligados à ideologia incel, incluindo o ataque de Alek Minassian, que matou dez pessoas em Toronto em 2018 ao jogar uma van contra pedestres. O autor do crime, em sua declaração,disse que estava “iniciando a rebelião incel”.

O FBI (sigla em inglês para Federal Bureau of Investigation, que em português significa Departamento Federal de Investigação, principal agência de aplicação da lei e inteligência do Departamento de Justiça dos Estados Unidos), em relatório de 2020, já classificou comunidades incel como uma ameaça crescente de terrorismo doméstico, citando o potencial de radicalização desses espaços.

 

Paulo hoje e o caminho de volta

Hoje, depois de quase um ano em acompanhamento psicológico, Paulo se mantém afastado dos grupos e tenta reconstruir sua vida social. “Eu ainda luto com minha autoestima, não vou mentir. Mas, hoje, eu entendo que não sou uma vítima da sociedade, nem das mulheres. E que aquele mundo só me levava para um buraco cada vez mais fundo”. Ele compartilha sua história na esperança de alertar outros jovens. “Se alguém está lendo isso e acha que não tem saída, tem. Mas não vai encontrar resposta nesses grupos. Vai encontrar em si mesmo, com ajuda, com terapia. Dá pra sair”..

O submundo dos incels continua ativo, nas sombras da internet. Mas histórias como a de Paulo provam que há caminho de volta.

Esta reportagem integra uma coletânea de livro-reportagem investigativo. Este capítulo trata da dinâmica de grupos incels e misóginos. Leia o capítulo anterior aqui. Acompanhe no Periódico as próximas publicações.

 

Ficha técnica

Produção: Anna Perucelli

Edição e publicação: Amanda Grzebielucka, Eduarda Gomes e Maria Cecília Mascarenhas 

Supervisão de produção: Hendryo André

Supervisão de publicação: Aline Rosso e Kevin Kossar Furtado

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